ORIGENS DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DA UNICAMP
(Antonio A. Arantes, UNICAMP, SP - Presidente da ABA – gestão 1988/1990)
A formação das instituições não foge muito ao desenho geral que resulta do encontro e ajustes de diversas vertentes que, podendo ser independentes umas das outras e mesmo se desenvolverem em direções opostas, terminam entrelaçadas pelas circunstâncias. Projetos no papel tornam-se realidade graças a esse entrelaçamento e aos conflitos a eles inerentes. Nas origens do Departamento de Antropologia identifico pelo menos três marcos fundamentais: o Golpe Militar de 1964 e suas conseqüências sobre a vida das universidades brasileiras, as transformações críticas da agenda das Ciências Sociais praticada na Universidade de São Paulo na década de 1960 e o projeto de criação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, encabeçado por Fausto Castilho e Rubens Murillo Marques, respectivamente coordenadores das áreas de ciências humanas e matemática daquela então recém criada universidade. Neste relato, pretendo indicar as principais idéias e fatos que, no meu entender, configuraram o início desse processo, e explicitar o papel que nele desempenhei. Torna-se, portanto, inevitável fazer algumas referências à minha própria trajetória. Setembro de 1968. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, na Rua Maria Antônia. Eis onde localizo meu ponto de partida.
A Faculdade de Filosofia da USP, no final dos anos 1960.
Uma intensa politização marcou positivamente a vida das universidades brasileiras nos anos que antecederam o golpe militar de 1964. Intelectuais e estudantes envolviam-se ativamente na organização política da sociedade civil, em defesa das reformas de base e dos direitos sociais, assim como na luta contra o imperialismo norte-americano na América Latina.
Embora os fatos sejam hoje bastante conhecidos16, vale lembrar que a segunda metade dos anos 1960 foi marcada pelo Golpe Militar e consolidação do regime autoritário no Brasil. O processo tem início com a deposição do presidente João Goulart e o incêndio da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, a 1o. de abril de 1964. A 9 de abril, é promulgado o Ato Institucional no 1 que autoriza a suspensão de direitos políticos, a cassação de mandatos legislativos, assim como a demissão, disponibilidade ou aposentadoria dos que “houvessem atentado contra a Segurança do País, o regime democrático e a probidade administrativa, excluída a apreciação judicial”. Na mesma data, é invadida a Universidade de Brasília. Dezessete professores e vários estudantes são presos e indiciados em Inquérito Policial Militar. Nos anos subseqüentes, é desencadeada a luta armada contra a ditadura e prossegue a violência contra a sociedade civil. Em março de 1968 o estudante Edson Luiz de Lima Souto é baleado pela repressão policial no Rio de Janeiro; em junho, organiza-se na mesma cidade a Passeata dos 100 mil, reunindo estudantes, artistas, intelectuais, clero, sindicalistas e povo em geral; em outubro, o 30o Congresso UNE, realizado clandestinamente em Ibiúna (São Paulo), é desbaratado pela repressão e 1240 estudantes são presos. Em 13 de dezembro é promulgado o Ato Institucional no 5, que autoriza o recesso do Congresso Nacional e das Assembléias Legislativas estaduais, cassa mandatos eletivos, suspende direitos políticos, demite ou aposenta juízes e funcionários (inclusive professores universitários), suspende o habeas corpus e autoriza julgamento em tribunais de “crimes políticos”.
Esses fatos tornam flagrante que os intelectuais e estudantes brasileiros eram singularizados pela mira das Forças Armadas. Iminentes professores e cientistas são aposentados compulsoriamente. Além da prisão, tortura, seqüestro e execução de colegas e companheiros, a sombra da repressão tornou-se cotidianamente presente na Faculdade de Filosofia, com informantes e provocadores infiltrados.
Passeatas, assembléias e muita discussão nos bares da Vila Buarque sobre filosofia, arte e política contextualizavam nossas atividades acadêmicas. Diferenças ideológicas e pessoais posicionavam jovens de uma mesma geração, que iniciavam suas carreiras em um meio social politicamente incerto, mas intelectualmente estimulante, exigente, engajado e cosmopolita. Nos anos 1960, intelectuais estrangeiros influentes freqüentavam regularmente a Faculdade deixando suas marcas e contribuições renovadoras. Entre eles estão incluídos Pièrre Clastres, Perry Anderson e Michel Foucault.
Sedimentava-se claramente, nas acaloradas discussões entre colegas ou entre alunos e professores, o que - na minha percepção – se configurava como pacto implícito de crítica à cultura e aos valores burgueses, assim como a convicção de que caberia à nossa geração, e a cada um de nós, a missão de conhecer e transformar a realidade em que vivíamos. Formava-se um compromisso ético tácito de lutar pela democracia e pela justiça social, embora os matizes ideológicos e partidários produzissem dissensões muitas vezes inconciliáveis.
Repetiam-se em nossos ouvidos os versos de Mario de Andrade: “Eu insulto o burguês níquel, o burguês burguês, digestão bem feita de São Paulo”; e, no horizonte, as palavras de Marx, nas teses sobre Feuerbach: “les philosophes n’ont fait qu’interpréter le monde de différentes manières; ce qui importe, c’est de le transformer”. Solidários aos operários e camponeses, nos considerávamos trabalhadores intelectuais.
O dia 2 de outubro de 1968 foi marcado por um episódio que desde o início se apresentou como algo muito mais grave do que as conhecidas escaramuças do Comando de Caça aos Comunistas contra os estudantes da Faculdade de Filosofia. Por volta das 10 horas da manhã, militantes anti-comunistas e policiais entrincheirados em pontos estratégicos dos edifícios da Universidade Mackenzie, em frente ao prédio da rua Maria Antonia, atacaram com paus, pedras, tiros e bombas incendiárias, estudantes, professores e funcionários e as próprias instalações da Faculdade. O ataque se estendeu até por volta das 19 horas, quando por ordem dos bombeiros, deixaram o prédio os que ainda restavam dos que lá se reuniram solidariamente ao longo do dia em defesa da Faculdade. Encontrava-me entre eles e facilitei a fuga apressada dos derradeiros combatentes pelo vitrô do Museu Plínio Ayrosa, onde se localizava a então Cadeira de Antropologia, onde trabalhava.
O culturalismo, e depois.
Deixei naquela noite a Universidade de São Paulo, levando comigo as propostas acadêmicas a que vinha me dedicando. Havia iniciado minha carreira como instrutor da Cadeira de Antropologia na Faculdade onde me formei. Ensinava também na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e no curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia de Araraquara, que fora visitada por Jean- Paul Sarte e Simone de Beauvoir em 1961, por iniciativa de Fausto Castilho, então professor de filosofia e que viria a ser o principal organizador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
A USP era o principal centro político-intelectual da região, e um dos mais destacados do país. Partindo da Estação da Luz, os trens que percorriam a Paulista e a Mogiana freqüentemente conduziam jovens professores paulistanos, provenientes da USP ou da PUC/SP, para Rio Claro, São Carlos, Araraquara, São José do Rio Preto e outras cidades. No vagão pullman, íamos finalizando a preparação das aulas e conversávamos muito, em especial sobre a situação das universidades naquela conjuntura de muita incerteza. Com freqüência, distribuía material de propaganda política ao longo do trajeto. Campinas, a principal estação dessa linha férrea, era um lugar ambivalente; nem “capital”, nem “interior”. Embora estivesse relativamente à margem das conexões universitárias da época, articulava-se fortemente com o movimento político e intelectual de São Paulo. Lá se concentravam instituições culturais, de ensino secundário e superior, e conseqüentemente, estudantes e professores, provenientes de várias cidades e outros estados, residindo em repúblicas e pensionatos.
Na USP, ainda que na condição de auxiliar de ensino, estava engajado em um esforço de renovação do ensino e da prática da antropologia que envolvia, entre outros professores, Eunice Durham, Ruth Cardoso e Amadeu Duarte Lanna. Esse empenho, que não era totalmente compartilhado pela direção da cadeira, contava com a simpatia de Gioconda Mussolini e a adesão de vários outros colegas. Tratava-se, em resumo, de consolidar rupturas em dois planos. Por um lado, no que dizia respeito à orientação durkheimeana prevalecente, que tendia a interpretar o simbolismo como efeito e decorrência da estrutura social. Por outro, superar a concepção da antropologia como a ciência do homem e suas obras, abrangendo os quatro campos reconhecidos pela prática dominante nos Estados Unidos no período pós-guerra, ou seja, abrangendo antropologia física, cultural, lingüística e arqueologia, com destaque para os estudos de “cultura e personalidade”, que eram uma temática forte na época. O ensaio intitulado Campo e divisões da antropologia, da autoria de Ralph Linton17 , incluído na coletânea organizada por Gioconda Mussolini18 , exemplifica o enfoque que então orientava a iniciação ao estudo da antropologia na Universidade de São Paulo.
A renovação dos programas das disciplinas básicas de formação em antropologia opunha-se a essas duas vertentes – por assim dizer, sociológica e culturalista - da antropologia. Procurava-se defender, numa veia levistraussiana, a compreensão do social como realidade simbolicamente constituída e da cultura como realidade sui generis. Articulando Marcel Mauss a Bronislaw Malinowski19 , passou-se a introduzir os estudos antropológicos a partir do fenômeno da troca, dando-se destaque à reflexão sobre as implicações recíprocas entre linguagem e cultura, assim como sobre as relações epistemológicas entre a lingüística e a antropologia. Note-se que embora Lévi-Strauss tivesse sido um dos introdutores dos estudos antropológicos na USP, apenas em 1962 – ao que eu saiba -, com a publicação de Totemisme Aujourd’hui e La pensée sauvage, suas teorias passaram a constituir a embocadura básica e introdutória do ensino dessa disciplina naquela instituição20 .
Paralelamente, a formação acadêmica para a prática etnográfica na USP começava a trilhar as pegadas da antropologia social britânica, em especial na vertente malinowskiana, a que Eunice Durham dedicou grande interesse e sobre a qual defendeu tese de livre-docência21 . Na crítica ao culturalismo, assim como na aproximação da antropologia com os paradigmas marxista e estruturalista, foram fundamentais as contribuições de professores de filosofia como Bento Prado Júnior e José Artur Giannoti e de outros, vinculados à Cadeira de Sociologia, dirigida por Florestan Fernandes. Entre estes, que incluíam Maria Sylvia Carvalho Franco, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, destacou-se Roberto Cardoso de Oliveira, cuja obra marcou definitivamente a trajetória da antropologia no Brasil e que, nessa época, dedicava-se ao projeto “Áreas de fricção inter-étnica no Brasil”22 e à criação do Programa de Pós-graduação em Antropologia no Museu Nacional, criado na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1968.
Mudanças teóricas não ocorrem, como se sabe, independentemente das agendas de pesquisa. Por algum tempo ainda, ao longo dos anos 1960, os movimentos migratórios e as mudanças sócio-culturais deles decorrentes mantiveram-se no foco da atenção dos antropólogos da USP, assim como questões de etnologia indígena colocadas pelo campo da disciplina. Mas apresentava-se também, e muito fortemente, a questão do papel específico do antropólogo frente aos assuntos trazidos pelos tempos em que vivíamos. A cultura popular se apresentava, sobretudo no meio universitário, como um espaço poderoso de construção ideológica da cidadania e do anti-imperialismo. O campesinato – sobretudo o nordestino – e suas formas de organização e ideologia emergiam como universo político e simbólico onde se construíam as transformações em curso e importantes representações, associadas a tipos humanos como lavradores da cana, cangaceiros e beatos. A compreensão dos processos de ocupação crescente e maciça dos arredores das grandes cidades por trabalhadores migrantes e suas formas de organização e sociabilidade demandavam novos olhares sobre vida urbana. A ampliação do sistema rodoviário nacional e a penetração de áreas que até então encontravam-se ao abrigo da economia de mercado, interpelavam os cientistas sociais e, em especial, os antropólogos. Que tínhamos a dizer a respeito dessas mudanças? De que forma contribuir para a construção da democracia, nessa conjunturadominada pelo regime militar?
Nessa época, questões análogas colocavam-se a pesquisadores que trabalhavam em outras regiões do mundo, como atesta o célebre Simpósio sobre a Responsabilidade Social da Antropologia, realizado nos Estados Unidos em 1967. Afirma Verena Stolcke, referindo-se a esse encontro “sus organizadores y los participantes en el debate posterior denuncian, por un lado, la complicidad de los científicos sociales con la política imperialista norteamericana y su colaboración en actividades contra insurgentes del gobierno en América Latina y Asia y, por otro, ponen en tela de juicio las pretensiones cientificistas asépticas de la antropología clásica relativista en un mundo globalmente pos-colonial, una postura crítica que fue además alentada por el clima político radical que la revuelta estudiantil, la oposición a la guerra del Vietnam y la lucha por los derechos civiles de los negros propaga en las universidades norteamericanas”23.
As conseqüências do Golpe Militar sobre a Universidade interromperam drasticamente a trajetória que vinha se delineando no âmbito da USP e obviamente não só nessa universidade. O ambiente político na Faculdade prenunciava as cassações e aposentadorias, que de fato foram efetivadas pelo AI5, em dezembro daquele mesmo ano.
Nesse contexto chegava a notícia da criação de um núcleo interdisciplinar de excelência na área de ciências humanas, na recém-criada e inovadora Universidade Estadual de Campinas. Esse projeto, que privilegiaria desde o início a pesquisa e a pós-graduação, tinha o apoio da Fapesp e o respaldo de intelectuais seriamente comprometidos com a defesa da vida universitária no país, apesar da ambivalência que revestia a figura de seu reitor, o médico e professor Zeferino Vaz. A estratégia de implantação desse núcleo previa o estágio de um pequeno grupo de jovens intelectuais na Faculdade de Letras de Besançon (França), com o objetivo de desenvolverem os seus conhecimentos em lingüística geral e, posteriormente, prosseguirem sua formação nas respectivas áreas de especialização. Os bolsistas assumiam também o compromisso de, retornando ao Brasil, se ocuparem da constituição do corpo docente e da implantação do futuro Instituto e seus programas de pós-graduação.
A Universidade de São Paulo passava por uma de suas piores crises em decorrência das sucessivas investidas do regime militar. Era praticamente impossível para um recém-formado desenvolver-se intelectualmente e, ao mesmo tempo, enfrentar as vicissitudes que se sobrepunham às atividades acadêmicas. Praticamente não havia alternativa. A 15 de outubro, 13 dias pós os Acontecimentos da rua Maria Antonia9 , foram encaminhados o meu pedido de exoneração da USP e contrato pela Unicamp e Fapesp. Nos primeiros dias de novembro embarquei às pressas para Paris com o sociólogo André Maria Pompeu Villa-Lobos, meu ex-colega na USP. Em Paris, nos reunimos a Ângelo Baroni (matemático) e Luiz Orlandi (filósofo), também professores recém contratados pela Unicamp, e ao diretor do Instituto, Fausto Castilho. Várias pessoas da minha geração foram direta ou indiretamente afastadas da USP nesse período.
Entre o inverno de 1968 e o outono de 1969.
No trem, entre Paris e Besançon, começou a tomar forma o mundo novo que se abria à minha frente. A missão era excessivamente complexa e a responsabilidade enorme. Entretanto, os meus objetivos eram claros, ainda que frágeis, e projetava um futuro menos incerto do que havia deixado em São Paulo. Procurei levar adiante e amadurecer, no novo ambiente, as preocupações que orientavam os meus primeiros passos na USP. Levei comigo os ecos da Rua Maria Antônia e encontrei na Faculdade de Letras de Besançon um ambiente universitário ainda imerso no clima da revolta estudantil de Maio de 68.
Concentrei-me nesse período principalmente no estudo da teoria lingüística e na poética. Por 8 ou 9 meses, li Troubetskoy, Jakobson, Ruwet, Chomski, Greimas, entre outros. Nas discussões sobre poética debrucei-me sobre Baudelaire e Lautréammont. Aprofundei a leitura de Vladimir Propp.
O estudo da lingüística era essencial para entender a problemática que pautava as ciências humanas naquele país e, em particular, a antropologia estrutural. Além disso, a ênfase nos estudos de linguagem era um diferencial importante da proposta da Unicamp que propunha, com destaque, a inclusão dessa área no ambiente interdisciplinar a ser criado.
Contudo, no que dizia respeito especificamente à antropologia, parecia-me essencial fortalecer em Campinas a pesquisa empírica e a prática etnográfica. Em comparação com o preparo de colegas de outros países, a formação que se oferecia nas principais universidades do Brasil mostrava-se atualizada e, em muitos casos, tão ou mais cosmopolita do que em várias universidades européias. Entretanto, havia muito a ser desenvolvido enquanto treinamento em métodos de pesquisa e na prática de campo, que são essenciais para o ofício do antropólogo.
No Brasil, a antropologia era uma disciplina de interesse relativamente restrito, do ponto de vista dos cientistas sociais “de esquerda”. De modo geral, considerava-se esse enfoque excessivamente particularista e, por essa razão, insuficiente para alimentar o debate sobre as grandes questões da agenda política nacional. Entretanto, do ponto de vista em que eu me colocava ao lado de outros colegas, essa questão parecia circunstancial. Ela não decorria necessariamente de problemas epistemológicos próprios daquela área de conhecimento. Acreditava, como outros, que as contribuições da antropologia ao conhecimento da realidade nacional se fariam exatamente em razão do enquadramento bem localizado e em escala reduzida de seus objetos concretos, desde que se fizessem as necessárias mediações interpretativas. Aliás, os rumos posteriores da política, com o fortalecimento dos movimentos sociais, e a crise de hegemonia dos grandes paradigmas, acabaram por confirmar esse entendimento.
Esses problemas conduziam a atenção para tradições de pensamento que haviam se consolidado não tanto na França, mas no outro lado do Canal da Mancha, ou seja, no âmbito da antropologia
social britânica. Eis porque busquei na London School of Economics, assim como as universidades de Oxford e Cambridge condições para dar continuidade à minha formação e ao encaminhamento do projeto da Unicamp.
Embora os estudos sobre a América Latina e, em particular sobre o Brasil, ainda não estivessem plenamente institucionalizados em Cambridge24, o desenvolvimento da obra de Edmund Leach sugeria uma série de convergências em relação à trajetória que eu vinha trilhando, sobretudo no que dizia respeito à preocupação de articular os avanços teóricos do estruturalismo racionalista francês aos métodos e pressupostos da etnografia empirista britânica. Nesse sentido, destacavam-se na obra de Leach a monografia Political systems of highland Burma, publicada em 1954 e reimpressa em 1964 com nova introdução do autor, assim como o ensaio Rethinking anthropology que data de 1959 e foi publicado em 1961 na coletânea que leva o mesmo título, e vários estudos sobre narrativas bíblicas publicados nos anos 1960, entre os quais Virgin birth, publicado em 1966. Leach não apenas me acolheu como estudante, mas aceitou contribuir para a missão de criar o núcleo da área de antropologia na longínqua Campinas, o que fez através de contatos pessoais e dialogando em minhas sessões de supervisão25.
As neves de 1969 e um café junto ao Hyde Park.
Numa tarde de inverno, em Cambridge, encontrei Peter Fry acompanhado de um amigo, fellow do Clare College. Apresentamo-nos rapidamente e marcamos um encontro para conversar por mais tempo sobre a proposta de Campinas. Expus-lhe o que se pretendia em termos acadêmicos e o objetivo de iniciar em agosto daquele mesmo ano as atividades da nova área. Inicialmente se ofereceria a disciplina de introdução a todos os estudantes do ciclo básico de ciências humanas e, já no ano seguinte, seria feita a primeira seleção de alunos para o programa de mestrado em Antropologia, que inauguraria a pós-graduação no novo Instituto.
Ele mostrou-se muito receptivo à proposta, embora manifestasse uma compreensível resistência em face da visível contradição de se pretender criar uma universidade crítica e inovadora sob o regime militar, num país que perseguia os seus intelectuais mais brilhantes, muitos dos quais – juntamente com chilenos, gregos e outros - buscavam exílio na Inglaterra e em outros países da Europa. Ele tinha forte disposição de se instalar no Brasil e envolver-se com assuntos brasileiros. Sua formação se adequava ao que se desejava para o futuro departamento. Havia defendido recentemente tese de doutorado na Universidade de Londres, a partir de pesquisa de campo no Zimbabwe (então Rodésia), orientado por Mary Douglas. Sua formação associava os estudos sobre ritual e simbolismo à metodologia de análise de processos e conflito social, desenvolvida pela escola de Manchester. Possuía experiência em pesquisa de campo (teórica e prática) e conhecimento de um tema e região relevantes para compreender a formação cultural do Brasil.
Encontrei minha segunda parceira no gabinete do Cônsul do Brasil em Londres. Verena Stolcke (então Martinez-Alier) retornava de Cuba, onde vivera entre 1967 e 1968. Sua tese de doutorado, orientada por Peter Rivière na Universidade de Oxford, encontrava-se em fase de conclusão e versava sobre relações raciais e de gênero em Cuba colonial, no século XIX. Possuía forte interesse pela pesquisa de natureza histórica e questões relativas à economia e à política, demonstrando conhecimento e vivo interesse pela problemática do campesinato latino-americano, inclusive o brasileiro.
Após uma longa conversa num café em Park Lane foi superada a compreensível desconfiança que se manifestara em nosso primeiro encontro, em razão do contexto político da proposta que lhe era feita. Mais uma vez, foi preciso esclarecer que, no Brasil, seria possível contribuir para a formação da nova universidade sem abandonar a crítica e oposição ao regime militar, assim como a defesa dos políticos e acadêmicos exilados. Vivenciávamos um bom exemplo de que a política também se faz nas fissuras das instituições e à margem do processo dominante.
Configurava-se finalmente a pequena equipe que se ocuparia de conceber e instalar a área de antropologia na Unicamp. Os perfis dos docentes participantes se complementavam em termos de áreas geográficas de interesse, assim como de especialidades, preferências teóricas, experiência em pesquisa de campo e em docência. Iniciamos na Inglaterra a estruturação do currículo de antropologia e a elaboração dos programas das disciplinas a serem ministradas. Consolidamos um pré-projeto do curso e a lista de livros e filmes que seriam adquiridos para a biblioteca do Instituto. Compartilhávamos um genuíno interesse em investir na nova instituição e muita disposição para enfrentar as dificuldades que certamente se apresentariam.
O retorno.
Desembarquei em São Paulo em junho de 1970. Poucas semanas depois, recebi Peter Fry no Porto de Santos e, em seguida, Verena Stolcke, “con su tesis bajo el brazo y sus dos hijas de la mano” como ela costuma dizer. Campinas era, não só para eles, mas também para mim, um lugar distante, embora tão perto de São Paulo, minha cidade de origem. A Unicamp ainda era uma idéia abstrata, um projeto no papel, quase uma visagem no horizonte. Provisoriamente, hospedamo-nos todos num pequeno hotel próximo ao centro da cidade. Começamos a trabalhar nos barracões desocupados de um depósito de gás na Avenida Brasil, próximo à Estação Rodoviária. Algumas semanas depois passamos a trabalhar no campus ainda em construção, em meio a uma penetrante poeira que dominava a paisagem e cobria tudo de vermelho: moveis, livros, documentos e objetos pessoais, que nós levamos para o espaço de trabalho ainda em formação.
Uma Kombi nos conduzia diariamente ao campus, que distava cerca de 10 km do hotel, e nos trazia de volta. Soubemos depois que o motorista era informante. Dei aulas com outros infiltrados nas salas do Ciclo Básico. Meses depois, minha casa foi vasculhada e fitas com entrevistas gravadas em campo – e somente elas – roubadas (nunca ficou claro se por ladrões, ou policiais). Não se podia - ou, pelo menos, não era seguro - citar Marx e Engels nas bibliografias distribuídas por escrito em sala de aula. Procurávamos ser cautelosos, embora fossemos por demais visíveis e totalmente estranhos à paisagem humana local.
O trabalho em sala de aula era desafiador. O currículo previa dois anos obrigatórios do que se denominava Studium Generale, que se compunha de um conjunto de disciplinas comuns para todos os
graduandos em ciências sociais, economia, história e estudos da linguagem. A graduação em filosofia ainda não havia se iniciado. Quanto à antropologia, esse ambiente intelectual inovador e de certo modo inusitado colocou questões que nos levaram a rever os planos elaborados no exterior, descontextualizadamente. No reencontro com os demais colegas e com os alunos, nossos planos mudaram pouco a pouco e, por fim, drasticamente.
Havíamos decidido, em linhas gerais, iniciar a disciplina introdutória pela noção Maussiana de fato social total e apresentar o objeto da antropologia a partir da diversidade tipológica dos meios de subsistência e da organização social, que era um procedimento em voga, enfatizando a importância da etnografia para a produção do conhecimento. Algumas aulas eram escritas como conferências e distribuídas impressas aos alunos. Essa disciplina e algumas outras também de recorte panorâmico eram ministradas conjuntamente pelos três docentes, segundo os dotes e dons de cada um de nós. Compensávamos nossa limitada experiência em gestão universitária com o empenho de buscar os melhores parceiros e cumprir coletivamente o planejado.
Um dos principais desafios para todas as áreas era construir o diálogo intelectual entre as disciplinas, vencer as exigências cristalizadas pelos padrões curriculares oficiais e mediar os usos e costumes próprios das profissões e seus praticantes. Esse era, a meu ver, o aspecto essencial, inovador e mais positivo do projeto do IFCH. Mas o peso inercial dos interesses setoriais, das culturas acadêmicas convencionais e dos currículos mínimos tendeu a prevalecer. Áreas de conhecimento com tradição de ensino e pesquisa já consolidadas de forma mais independente, como a economia e os estudos de linguagem (letras), foram transformadas em Institutos, com seus respectivos programas de ensino e pesquisa. Progressivamente – mas não sem conflito – estruturaram-se os departamentos de ciências sociais, filosofia e história. Finalmente, o primeiro deles foi desmembrado em antropologia, política e sociologia e estruturam-se progressivamente os cursos de graduação e pós do modo usual.
Perdurou no IFCH, ainda que residualmente, o gosto pelas abordagens temáticas e interdisciplinares, que desafiava nossa capacidade intelectual e de organização já nos primeiros anos. Até recentemente, ambos persistiram – o gosto da interdisciplinaridade e o desafio dela decorrente - no programa de Doutorado em Ciências Sociais, que foi organizado segundo áreas temáticas trans-
disciplinares. Ao lado desse componente da cultura institucional, que certamente marcou a antropologia feita na Unicamp, perdurou durante muito tempo entre nós o sentimento de communitas, que foi reforçado pela cultura, ideologia e estilos de vida dessa nossa geração. Penso que entre os aspectos mais inovadores do trabalho realizado por esse pequeno grupo de antropólogos - que se ampliou e, obviamente, se enriqueceu e mudou consideravelmente com o passar dos anos – destaca-se um renovado interesse pelas margens e fissuras, pelo trans, o inter, o pós...
É claro que este não é um diferencial exclusivo dessa instituição. Mas não se pode deixar de observar que esse estilo – se é que o termo se aplica - tem sido reiterado por professores, alunos e ex-alunos do departamento, e que essa reiteração é coerente com o sentimento de comunidade ou esprit de corps que colegas de outras instituições muitas vezes identificaram como próprio do “pessoal de Campinas” em épocas passadas.
16 - Cf. cronologia preparada pelo Instituto Perseu Abramo e a extensa bibliografia disponível sobre o período.17 - R.Linton, “Scope and aims of anthropology” in R.Linton (org) The science of man in the world crisis. New York: Columbia University Press, 1945.
18 - Mussolini, G. Evolução, raça e cultura. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. Essa coletânea foi publicada tardia e postumamente com apresentação de Florestan Fernandes. Sua introdução estava sendo finalizada pela autora por ocasião de seu falecimento, em 1969.
19 - Refiro-me a M.Mauss “Essai sur le don”. Paris: Année sociologique, 1923-1924, t.I. E a B.Malinowski Argonauts of the Western Pacific. Londres: Routledge and Kegan Paul Ltd, 1922.
20 - Le totemisme aujourd’hui. Paris: Presses Universitaires de France, 1962. La pensée sauvage. Paris: Librairie Plon, 1962. Não se pode esquecer que as obras de Levi-Strauss precursoras dessa virada teórica foram L’analyse structurale en linguistique et en anthropologie (1945), Les structures elementaires de la parentée (1947), La sociologie au XXeme. Siècle (1947) e Introduction a l’oeuvre de Marcel Mauss (1950).
21 - E. Durham, A reconstituição da realidade. Um estudo sobre a obra etnográfica de Bronislaw Malinowski. Sào Paulo: Editora Ática, 1978.
22 - R.Cardoso de Oliveira, O índio e o mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. Resultam também desse ambiente as teses de doutorado de Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni sobre o trabalho escravo, ambas defendidas em 1962.
23 -V. Stolcke De padres, filiaciones y malas memorias. ¿Qué historia de qué antropología? In Joan Bestard i Camps (ed.), Después de Malinowski, Federación de Asociaciones de Antropología del Estado Español y Asociación Canaria de Antropología, Tenerife, 1993.
24 - Refiro-me ao livro S.Mathias et allii, Os Acontecimentos da Rua Maria Antonia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
25 - Celso Furtado (research student do King ́s College em 1957-8 e, em 1973-4, professor da cátedra Simon Bolívar em estudos latino-americanos) foi um dos primeiros intelectuais brasileiros dessa geração a freqüentarem a Universidade de Cambridge. Durante os anos 1960 e 1970, Fernando Henrique Cardoso, José de Souza Martins e Roberto da Matta também permaneceram períodos prolongados em Cambridge, como professores visitantes.
Extraído de:
Associação Brasileira de Antropologia. Homenagens: Associação brasileira de antropogia: 50 anos. Organizadoras: Cornelia Eckert, Emilia Pietrafesa de Godoi. Blumenau: Nova Letra, 2006. p 37-50. - Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/livros/ABA50Anos.pdf