Racionais, Doutores Honoris Causa

Data da publicação: sex, 14/03/2025 - 10h12min

Texto: Ana Ornelas e Valério Paiva | Foto de Capa: Antonio Scarpinetti (SEC/Unicamp) | Revisão: Felipe dos Santos

Ao sair do carro e se deparar com a multidão de fãs disputando uma foto, Mano Brown, do grupo Racionais MC’s, declarou: “Eu só entro naquela sala se todos vocês estiverem comigo.” A resposta do público, que veio aos berros, era sinônimo de pertencimento para aqueles que tanto aguardaram debaixo do sol o momento de prestigiar o grupo que simboliza esperança e transformação. Sendo o primeiro grupo do país a receber o título de Doutor Honoris Causa, ou seja, a maior honraria que uma universidade pode conceder a pessoas consideradas eminentes, o grupo Racionais MC’s – Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue – dá voz e nome a uma parcela da sociedade diariamente marginalizada. A cerimônia realizada na última quinta-feira (06 de março) na Unicamp foi histórica em diversos sentidos.

Eles são verdadeiros intérpretes do Brasil. É impossível entender momentos históricos sem ouvir Racionais como um contexto cotidiano. Por isso, quando a universidade entrega a sua maior honraria a um grupo de rap, periféricos, negros e que sobreviveram a tantas violências, mas, ainda assim, contribuíram para o pensamento social do brasileiro, é um sinal de mudança do locus de produção do conhecimento”, é o que diz Jaqueline Santos, coautora do documento que concedeu o título, ao lado dos professores Omar Ribeiro Thomaz e Daniela Vieira.

A trajetória de Jaqueline e Daniela com o grupo começou lá em 2022. Na época, estudantes de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp trouxeram a temática do hip hop, que era frágil e quase inexistente no próprio campus. Criada na periferia, Jaqueline viu nas letras dos Racionais um material poderoso e passou a utilizá-las em suas aulas. Isso culminou na histórica visita de três integrantes do grupo à Unicamp para responder a perguntas dos alunos da disciplina “Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro”, ministrada pela professora.

O professor Omar Thomaz acrescenta: “Além delas (Jaqueline e Daniela), é importante destacar a participação dos alunos na transformação do corpo discente, devido às políticas afirmativas que passaram tardiamente a fazer parte da Unicamp.” Nesse sentido, o estudante do Instituto de Biologia (IB), Murilo Sala, reconhece a importância desse momento no sentido pessoal e acadêmico. “Ver o artista que a gente escuta e sabe que vem do mesmo lugar que nós, pretos e pobres, conseguir esse alcance e receber esse título reforça toda nossa história”, contou.

Desde 2019, a Unicamp reconhece a contribuição do grupo para a reflexão sobre a realidade brasileira, ao incorporar Sobrevivendo no Inferno (álbum e livro) na bibliografia do vestibular. Com o avanço de políticas de inclusão da população negra, a demanda por espaços e reconhecimento dos saberes populares ganhou força, por meio de greves e muita luta da comunidade universitária. Marina Rebelo Tavares, servidora do Arquivo Edgard Leuenroth do IFCH, participou da mobilização na Congregação do instituto pela homenagem. “Em 2022, após ajudar a organizar a aula magna dos Racionais MC’s na Unicamp, fui tocada pela ideia de conceder essa honraria ao grupo. A categoria de funcionários técnico-administrativos da Unicamp historicamente tem mais negros proporcionalmente, e não seria possível esperar que a titulação de Doutor Honoris Causa viesse sem que nós nos envolvêssemos”, relatou.

A diretora do IFCH, Andréia Galvão, destacou na cerimônia o caráter inovador da homenagem e sua importância histórica para a universidade. “Hoje é um dia histórico para esta universidade. É histórico porque os Racionais são os primeiros intelectuais negros e periféricos a receberem esse título na Unicamp; porque estamos concretizando uma proposta que não nasce dos caminhos institucionais habituais, mas, sim, da comunidade, especialmente de estudantes e funcionários do IFCH, do movimento estudantil e do movimento negro, e porque estamos concedendo um título a um grupo, e não a um indivíduo, o que também é uma inovação”, afirmou.

Além do ineditismo de uma homenagem a um grupo – ainda mais formado por homens negros e periféricos –, a concessão do título teve um grande envolvimento de servidores técnico-administrativos e estudantes, junto a docentes, na Congregação do IFCH. “Acredito que é muito simbólico que, na história desta universidade, a única vez que um funcionário solicita a concessão deste título seja para um grupo que dá voz aos negros e periféricos. Com isso, a universidade mostra que somos mais do que uma instituição de ensino de excelência. Precisamos ser um espaço de diálogo constante entre as diferentes categorias e, principalmente, com a sociedade, que ouve, interage e valoriza diferentes saberes e vozes”, completou Marina Rebelo.

Mano Brown refletiu sobre a trajetória do grupo e o significado do título, lembrando o início de carreira: “Quando começamos o grupo, em 1989, a única certeza que tínhamos era que, quando os pretos nos ouvissem, alguma coisa aconteceria. Não pensávamos em dinheiro, carro, nessas coisas materiais. Isso veio depois, foi agregado ao longo desses 36 anos”, disse Brown. “Fui um jovem afoito, estudei muito pouco, não tive tempo para estudar. A questão era matar a fome. E quando tentei estudar, me senti um excluído na escola. Não me adaptava, não aprendia, não tinha amigos, então preferi sair para procurar um mundo melhor para mim”. Ele destacou também que o reconhecimento pela Unicamp gera muitas reflexões e que a magnitude da homenagem ainda está sendo processada. “Esse momento é para renovar o voto de lealdade e compromisso perante vocês, depois dessa nomeação. Não é difícil ser leal, não é difícil. O difícil é se manter, é se fazer entender às vezes. Mas manter o ideal, isso sempre. A causa é maior do que nós, e depois de nós, outros virão. Aliás, já chegaram, já estão por aí, atuando de forma brilhante”, argumentou.

Por sua vez, KL Jay agradeceu à ancestralidade e ao movimento hip hop, que resgatou a história e a cultura negra em todo o mundo: “O hip hop fez um grande resgate dos pretos do mundo inteiro. Resgatou a história, resgatou a música dos anos 50, 60, 70. Resgatou grandes líderes, como Malcolm X e Marcus Garvey. Para mim, o hip hop é um acontecimento espiritual. Já estamos juntos nessa caminhada há 400 anos. Há 30 mil anos, já estávamos juntos e nos reencontramos agora para cumprir essa missão. Racionais não é só música, não é só um grupo, não é só enfrentamento. É uma missão. Sou muito grato por fazer parte de um grupo tão poderoso como os Racionais”.

Já Ice Blue compartilhou sua experiência pessoal, lembrando das dificuldades e das lutas enfrentadas ao longo da trajetória do grupo. Ele expressou gratidão por ver seus ancestrais representados naquele momento e por receber uma honraria tão significativa: “Foi muito difícil, não teve descanso, nem folga. Foi uma luta em cima da outra. Não podemos esquecer disso. Hoje, sei o que é ter um filho preto e, da porta para fora, enfrentar a realidade. Eu sei o que minha mãe sentia quando ela perguntava onde eu estava. Eu passo por isso agora. Ter um filho preto no Brasil, 36 anos depois, ainda tem um grande significado. Hoje, estar aqui, vendo todos os meus ancestrais, como meu avô Benedito, seu Isaac e tantos outros que lutaram por isso, me faz sentir muito agradecido e honrado.”

Por fim, Edi Rock encerrou as falas do grupo lembrando que a primeira gravação dos Racionais foi realizada justamente em Campinas, em 1989, e fez uma reflexão poética sobre a luta negra, destacando a importância de líderes que reconstruam o orgulho e a identidade negra, tão fragilizados ao longo da história. “Precisamos de um líder de crédito popular, como Malcolm X foi na América em outros tempos, que seja negro até os ossos, um de nós, e reconstrua o nosso orgulho, que foi destruído e virou destroços. Nossos irmãos estão desnorteados, entre o prazer, o dinheiro. Desorientados, brigando por coisas banais, prestigiando a mentira, desinformados demais. Chega de festejar a desvantagem, de permitir que desgastem a nossa imagem descendente. A juventude negra agora tem voz ativa. Acho que é isso. A caminhada continua, rapaziada”, discursou.

Durante a cerimônia, o artista plástico Herbert Otacilio da Silva, nascido em Mogi Mirim e formado pelo Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis), atualmente graduando em Artes Visuais no Instituto de Artes (IA), entregou uma obra em homenagem aos Racionais MC’s, simbolizando a conexão entre arte, educação e resistência. Em seguida, a cerimônia foi encerrada com a apresentação da companhia de teatro Itage, criada em 2019 a partir de um grupo de estudantes da Escola Estadual Carlos Gomes, em Campinas.