
Visita ao AEL marca início do projeto que celebra a obra de Octavio Ianni
Valério Paiva
Uma visita guiada ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp marcou, na tarde da última segunda-feira, 13 de outubro, a apresentação das atividades do projeto Octavio Ianni, 100, iniciativa dedicada a preservar e difundir a obra e a trajetória intelectual de um dos principais sociólogos brasileiros do século XX.
Realizada no dia em que se completaram 99 anos do nascimento de Ianni (1926–2004), a atividade reuniu estudantes e pesquisadores no AEL para conhecer o trabalho do arquivo e parte de seu acervo histórico, que inclui documentos, coleções e registros relacionados a diferentes dimensões da vida intelectual e política brasileira — muitos deles diretamente ligados aos temas de pesquisa que marcaram a produção de Octavio Ianni ao longo de sua trajetória.

A primeira parte da visita foi conduzida pelas funcionárias Marina Rebelo e Maria Dutra, que apresentaram aos participantes um panorama geral do acervo do AEL e explicaram as principais técnicas de preservação e restauro de documentos históricos. Em um segundo momento, foram apresentados trechos inéditos das aulas ministradas por ele na Unicamp em 1998, hoje preservados em gravações de áudio, além de registros audiovisuais e outros documentos vinculados a sua vida e pesquisas.

Os integrantes do projeto — Pedro Picelli, Diogo Valmor Pereira, Vinicius Borges Alvim e Breno Bettoni Basso, sob a coordenação da professora Mariana Chaguri — apresentaram os objetivos e os primeiros resultados do trabalho, desenvolvido no âmbito do Centro de Sociologia Contemporânea do Departamento de Sociologia do IFCH Unicamp.
O ponto de partida do projeto é um conjunto de 17 fitas cassete contendo as aulas ministradas por Ianni na disciplina Sociologia de Marx, no segundo semestre de 1998. As gravações foram doadas ao AEL em 2017 por Andriei Gutierrez, mas permaneceram inéditas até o início do trabalho do grupo em 2023. Com apoio do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, as fitas foram digitalizadas e começaram a ser transcritas e editadas, somando cerca de 280 páginas de material.
“O grande objetivo do projeto é reconstituir e rememorar a trajetória intelectual do Octavio Ianni a partir desse material específico. Essas 17 fitas são um registro raro de suas aulas e oferecem uma perspectiva viva do pensamento dele. Hoje marcamos não apenas os 99 anos de seu nascimento, mas também o início de uma contagem regressiva rumo ao centenário, em 2026”, explicou Vinicius Borges Alvim durante a apresentação.

O grupo pretende organizar uma série de publicações acadêmicas, incluindo um livro que apresente o curso como um manual de introdução ao marxismo sob a perspectiva de Ianni, além de materiais audiovisuais, exposições e podcasts que explorem conceitos fundamentais discutidos pelo sociólogo em sala de aula. Há também planos de realizar em 2026 uma exposição pública com parte do acervo, incluindo trechos de áudio e documentos originais.
Octavio Ianni nasceu em Itu (SP) em 1926, filho de uma família de imigrantes italianos — como grande parte da população de sua cidade natal à época. Ainda jovem, destacou-se pela militância política no movimento estudantil secundarista durante a ditadura varguista do Estado Novo. Nesse período, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), único partido ao qual foi filiado ao longo da vida.
Em 1948, iniciou o curso de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), tornando-se mestre em Sociologia e, posteriormente, docente da mesma instituição em 1956. Ligado ao pensamento de Florestan Fernandes, seu orientador, Ianni se consolidou como um dos principais nomes da chamada Escola Paulista de Sociologia.
Sua carreira foi interrompida em 1969, quando foi aposentado compulsoriamente pelo regime militar. No mesmo ano, participou da fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), referência da pesquisa crítica no período da ditadura. Em 1977, retomou a carreira acadêmica como professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde permaneceu até 1986, quando passou a compor o quadro de docentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) — instituição na qual lecionou até seu falecimento, em 2004.

Octavio Ianni em suas próprias palavras
A parte final da atividade no AEL foi marcada pela exibição de um vídeo com áudios inéditos das aulas ministradas por Octavio Ianni em 1998, além de trechos de sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2001. Os registros, apresentados ao público pela primeira vez, revelam a profundidade e a atualidade de seu pensamento ao tratar de temas como a universidade, as relações sociais, o consumo, o marxismo e grandes acontecimentos políticos do século XXI.
Em suas aulas de Sociologia de Marx, Ianni sintetiza a essência da análise sociológica das relações humanas:
“Vamos retomar a ideia de que a dialética das relações sociais. Essa expressão é uma maneira de colocar algo que é essencial ao método dialético. Se vocês me pedissem para sintetizar "o que você quer dizer com essa expressão", eu diria o seguinte (e acho que estou respondendo com o pensamento de Marx): tudo que é social é relação social. Tudo que é social se constitui na dinâmica das relações sociais; são as relações que constituem as coisas, as gentes e as ideias. Ainda que pareça que cada um de nós é o umbigo do mundo, que independe dos outros, na verdade, cada um de nós é uma relação social. Assim como a universidade, o país, a carteira, o lápis, a caneta, o giz. Tudo é relação social. Portanto, nada é natural no sentido de que é, em definitivo, a mesma coisa. O aluno pode ser pai ou filho, mãe ou filha, pode ser neto, bancário, operário, escriturário, milionário. Pode ser católico, protestante, agnóstico, candomblé, umbanda, quimbanda. Todas essas características são, como diria Marx, determinações constitutivas do ser social. Isto é, são relações, são nexos, são características, são atributos que constituem as pessoas e as coisas. Essas carteiras podem ser usadas para um curso universitário, para um curso de primeiro grau, de segundo grau ou até para um jardim de infância, onde as crianças se dedicam a fazer jogos, etc. Eu suponho que, à noite, quando todos saímos, as carteiras são usadas pelos fantasmas; não sabemos para quê. Elas têm outro significado. Tudo é relação social.”
Ao discutir o papel da universidade em um contexto marcado pelo avanço do neoliberalismo, Ianni chama atenção para os dilemas e responsabilidades da instituição:
“A universidade está sendo desafiada para enfrentar principalmente três desafios. Primeiro, está sendo pressionada para ajustar-se ao mercado, ao economicismo, à produtividade mercantil, ao ethos tecnocrático imposto sobre todas as formas pelo neoliberalismo. Os requisitos da produtividade e da qualidade total estão sendo impostos à universidade como se esta fosse — ou devesse transformar-se — em uma fábrica de mercadorias. Segundo, a universidade está sendo desafiada a preservar e a desenvolver o seu compromisso com a pesquisa original e o diálogo aberto com as mais diferentes correntes de pensamento. Além da formação de profissionais, técnicos, professores e pesquisadores, pode contribuir para o desenvolvimento das ciências, da filosofia e das artes. É assim que pode observar e enriquecer o ethos humanístico que continua a ser a sua essência. Em terceiro lugar, a universidade está sendo desafiada a abrir-se para a universalidade, inclusive no sentido histórico, social e cultural e várias de suas implicações. Mais do que nunca, cabe reconhecer que as transformações que estão ocorrendo no mundo nesta altura do século XX abrem novos desafios e novas perspectivas para o ensino e a pesquisa. Mais do que nunca, os dilemas e os horizontes das ciências sociais criam novas condições para que a universidade se desenvolva como um lugar fundamental do ethos humanista.”
Nos mesmos registros, Ianni aborda o conceito de fetichismo no capitalismo e sua presença no cotidiano contemporâneo, indo além do campo econômico e estendendo a crítica à cultura e ao consumo:
O fetichismo — nós vamos trabalhar sobre isso com calma depois —, numa acepção mais geral, é a tendência que os indivíduos têm, no jogo das relações sociais, de naturalizar ou idealizar uma certa situação, um certo movimento, como se ele fosse natural. Por exemplo, há o fetichismo da mercadoria, o fetichismo do dinheiro e o fetichismo do juro. Estou falando dos fetichismos que Marx analisa em O Capital. Mas nós podemos falar no fetichismo da figura da arte popular. Será que Madonna é um gênio da arte popular ou será que é um fetichismo fabricado? Será que Michael Jackson é um gênio da música popular ou ele é um fetichismo fabricado? E assim por diante. Então, há vários processos de fetichização que ocorrem habitualmente na vida social. Trata-se de eleger um fato, uma coisa, uma pessoa, uma figura ou uma ideia como algo absoluto. Então, vocês imaginam que há japoneses que vêm do Japão e fazem peregrinações ao túmulo de Ayrton Senna. Pode ser que isso seja muito bonito, muito humano, muito comovente, mas também pode ser que seja um fetichismo fabricado. Há uma indústria que funciona simultaneamente. Eu falei do Japão porque vi uma matéria sobre isso, como referência, mas seguramente há outros casos. Soube que Ayrton Senna tinha negócios muito poderosos no Japão e que havia empresas associadas à empresa dele. Mas, enfim, é um caso curioso de fetichismo, de fetichização de uma figura. É interessante a ideia de que o fetichismo é uma espécie de descolamento, de abstração da coisa, da pessoa ou da ideia. É uma forma de idealização, que às vezes se manifesta como uma espécie de mitificação, e, em outras ocasiões, como uma espécie de encantamento. Agora, é interessante a ideia que Marx apresenta sobre a consciência e a linguagem, que estão inseridas no mundo da cultura. E, nesse mundo da cultura, em um sentido amplo, convivem tanto conceitos, explicações e esclarecimentos quanto ideias de senso comum, ideias ingênuas e fetichismos. Inclusive, para não deixar por menos, há alguns intelectuais ou políticos que fetichizam Marx. Eles fetichizam uma frase, tomam certas formulações como pontos absolutos, sem levar em conta o contexto. Isso é uma forma de fetichização. Se não me engano, há uma carta de Marx na qual ele diz: "Não, eu não sou marxista, não. Não me venham com essa." Quer dizer, uma coisa assim, meio de partido, de igrejinha — isso, não. Ele deixa claro: "Eu não tenho nada a ver com isso.”
No programa Roda Viva, em 2001, o sociólogo comentou os atentados de 11 de setembro e suas consequências geopolíticas, oferecendo uma leitura que vai além da superfície dos acontecimentos:
“Aparentemente é um ataque terrorista. De fato, é um ato político. A reação não só dos governantes dos Estados Unidos, mas dos governantes da Europa e a formação da coalizão e a declaração de uma guerra enlouquecida mundial contra uma nação paupérrima transformaram aquele acontecimento em um ato político excepcional. As intenções dos seus atores podem ser exclusivamente terroristas, mas isso não esgota o acontecimento. O acontecimento ganhou outros significados pela reação do governo americano, pela reação dos governos europeus, pela maneira pela qual Tony Blair saiu pelo mundo fazendo a propaganda da guerra — um capítulo que não deve ser menosprezado. Por que não se apelou à ONU? Por que não se apelou a outras organizações transnacionais que poderiam ajudar a clarificar antes que se tivesse clareza sobre quais foram os responsáveis? Declarou-se a guerra. As intenções não definem a historicidade do acontecimento. O que a define é a dinâmica das atividades que se desenvolvem a partir dele.”

Para os organizadores, a visita ao AEL também teve como objetivo estimular novas gerações de estudantes a explorar os arquivos e produzir conhecimento a partir deles. “O AEL depende do trabalho de quem pesquisa. Muitas vezes nem o próprio arquivo sabe o que guarda até que alguém sente para investigar. Registrar, transcrever e difundir esse material é essencial para que ele não se perca”, destacou Vinicius.
O projeto Octavio Ianni, 100 segue em desenvolvimento e será um dos eixos centrais das comemorações do centenário de nascimento do sociólogo, em 2026. Até lá, a equipe pretende divulgar novos trechos das aulas, lançar publicações e organizar atividades que aprofundem a discussão sobre a obra de Ianni e sua relevância para a compreensão dos dilemas sociais contemporâneos. Conheça mais sobre o projeto Octavio Ianni, 100 no site do Centro de Sociologia Contemporânea no endereço https://csc.ifch.unicamp.br/grupo_pesquisa/98.