Essa tese busca analisar como se articularam noções religiosas, sociais, políticas e identitárias em torno da figura do caboclo, presente nos cultos afro-brasileiros e também protagonista da festa “cívico-popular” que comemora a Independência do Brasil na Bahia, onde centro-africanos provavelmente tiveram participação importante na criação e manutenção de seu símbolo.
O culto a caboclo, mais conhecido e abordado pelas ciências sociais nos estudos sobre a Macumba carioca, Umbanda, na Pajelança amazônica, Jaré do Maranhão, entre outros, e tacitamente reconhecido como figura principal nesses contextos, foi tratado ao longo do tempo como a síntese da mestiçagem no Candomblé, e fruto de profundas interações entre africanos e ameríndios, o que de certa maneira significava deteriorar a pureza africana pretendida nesses terreiros. Seu lugar no panteão afro-brasileiro foi devidamente dissimulado, dando lugar às marcas de “pureza” e “tradição” próprias do discurso de africanidade muitas vezes presente nesses cultos. Em uma análise mais profunda, no entanto, é possível reconhecer no complexo que envolve o culto a Caboclo elementos fortemente ligados às cosmovisões dos povos da zona Atlântica da África Centro-Ocidental, especialmente na região que compreende três grandes culturas regionais: Kongo, Umbundu e Ovimbundu. Esses grupos compartilhavam bases culturais similares, interagindo continuamente entre si, o que facilitou a forja de uma identidade calcada em heranças culturais comuns na experiência da diáspora.
A partir da análise de fontes escritas, como crônicas de missionários, relatos de viajantes e periódicos, combinadas a fontes de outras naturezas, como vestígios de línguas centro-africanas no léxico do culto, a tradição oral dos pontos cantados e a cultura visual encontrada nesses cultos, é possível desvendar sentidos contidos em práticas culturais de centro-africanos e seus descendentes no contexto diaspórico, as quais servem como pistas para compreender de que forma suas noções cosmológicas compartilhadas se prestaram para o desenvolvimento de uma identidade partilhada. Identidade essa que, no desenrolar do cotidiano e dos embates sociais a que estavam submetidos, também servia de resistência ao peso da escravidão e seus desdobramentos na sociedade altamente racializada no Brasil do século XIX e primeiras décadas do século XX.
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