O problema habitacional brasileiro tem sua origem sobretudo na privatização da terra e na emergência do trabalho “livre” no século XIX. Com a desigualdade de acesso à terra urbana, agravada pelo processo conhecido como “industrialização com baixos salários”, a crise econômica dos anos 1980 e 1990, o favorecimento, pelo Estado, do mercado imobiliário privado e a insuficiente aplicação dos instrumentos de regulação urbanística, a “ilegalidade” tem sido a única forma de uma parcela da população ter acesso à moradia. Apesar da histórica conivência do Poder Público diante dessa prática e da substancial melhoria no acesso da população aos serviços de infraestrutura urbana nas últimas décadas, a condição de legalidade do terreno continua sendo a principal característica do conceito de “aglomerado subnormal” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que classifica as áreas urbanas com precariedade de serviços públicos essenciais desde 1950.
O objetivo desta dissertação é refletir sobre o papel e as consequências do uso da condição legal de ocupação do terreno no conceito de aglomerado subnormal do IBGE, amplamente utilizado como proxy de favelas, tendo em vista a missão institucional dessa instituição, que é “retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania”. Para isso, construímos um arcabouço teórico sobre importantes aspectos do dinâmico fenômeno de “favelização” no país e sua mensuração pelo IBGE. Em seguida, identificamos, através da técnica estatística de Análise Discriminante, setores censitários urbanos considerados comuns (não subnormais) com características socioeconômicas, demográficas, habitacionais e de infraestrutura similares aos setores de aglomerados subnormais nas Regiões Metropolitanas (RMs) de Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Por último, relacionamos a classificação dos setores censitários (subnormais, similares e comuns) à inadequação dos serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo e energia elétrica nos setores. Para isso, construímos uma variável para contabilizar o número de serviços inadequados por setor em 2010.
Concluímos, a partir disso, que a classificação de aglomerados subnormais não é mais suficiente para representar as áreas urbanas com maior demanda de serviços básicos de infraestrutura ou mesmo de adequação desses serviços. Pudemos perceber que, em 2010, a localização urbana dizia muito mais sobre a precariedade dos serviços essenciais do que a condição de “subnormalidade” utilizada pelo IBGE. Por fim, sinalizamos, em um contexto de importantes mudanças previstas para o Censo Demográfico de 2020, a necessidade de o IBGE rever a utilização do termo “subnormal” e considerar a divulgação dos dados censitários através de uma classificação que expresse de maneira mais ampla as necessidades da população brasileira nos diferentes territórios urbanos, evidenciando, assim, as áreas mais atingidas pela desigualdade na distribuição de recursos públicos.