A Era Meiji (1868-1912) foi um período marcado por profundas mudanças na história japonesa, a saber: a formação de um estado-nação, o estabelecimento de uma língua nacional e de um sistema educacional unificado, a introdução de novos conceitos e palavras, e a adoção de novas instituições políticas e sociais. Essas mudanças se fizeram sentir também na esfera religiosa, e um dos aspectos mais complexos dessa dinâmica foi o surgimento de um movimento pelo fortalecimento do xintoísmo e por tentativas de supressão da influência budista na sociedade. Como resistência a uma possível eliminação do budismo, surgiram figuras no campo religioso e filosófico que adotaram um discurso paradoxal: ao mesmo tempo em que o defendiam como símbolo de identidade japonesa, remodelavam-no claramente inspirado nos moldes do cristianismo ocidental. Paradoxal pois o cristianismo havia sido proibido em todo o território japonês e seus praticantes, severamente perseguidos por mais de duzentos anos. Após a restauração, a abertura paulatina à religião estrangeira provocou ataques discursivos com teor nacionalista dos budistas que denunciavam os perigos que viriam com tal expansão. Destaca-se, nesse contexto, Ōuchi Seiran (1845-1918), cuja obra constitui objeto principal de nosso estudo. Figura central na modernização e popularização do budismo Zen, Seiran teve papel fundamental durante tão agitados anos, tendo criado e operado o primeiro jornal budista do Japão moderno, proferido constantes palestras públicas para a divulgação de um novo tipo de prática voltada a leigos, e fundador de organizações budistas de cunho nacionalistas. Suas atividades atravessaram diferentes campos e sua oposição ao cristianismo é um elemento central em seu pensamento.
A presente pesquisa consiste na análise dos discursos anticristãos que ocorreram concomitantemente com a modernização do budismo japonês do período Meiji, tendo com objeto central os trabalhos de Ōuchi Seiran. Seiran foi um dos principais responsáveis pela constituição do grupo nacionalista Sonkō Hōbutsu Daidōdan no fim da década de 1880. Formado por monges e leigos de diferentes partes da nação, tinha como objetivo minar a presença cristã em pontos fundamentais da sociedade japonesa, como o campo político e educacional, ao mesmo tempo em que afirmava o papel budista dentro de uma nação moderna. Nossa análise é embasada em uma abordagem da história cultural das religiões, buscando abarcar as representações, apropriações e mediações de seu discurso em resposta às mudanças sociais.