Esta tese apresenta um estudo do universo de relações fundadas a partir da experiência do sofrimento e da demanda por cuidado entre haitianos na cidade de São Paulo, no Brasil, baseado em trabalho etnográfico realizado entre 2016 e 2019. A pesquisa insere-se nos debates da antropologia acerca da mobilidade e das experiências migratórias, e, mais especificamente, busca situar o tema do sofrimento e dos deslocamentos através do exame atento da presença recente da diáspora haitiana no Brasil e das narrativas acerca da acomodação e da vivência desses sujeitos na metrópole paulistana. Tendo como pano de fundo a situação dramática dos migrantes e refugiados no contexto global atual, em que o sofrimento se revela como forma de conferir reconhecimento e legitimidade social aos deslocamentos, propõe-se uma investigação acerca de seus sentidos e implicações na experiência migratória em solo brasileiro em um período de aumento considerável do número de recém-chegados e de uma inegável mudança no perfil migratório nacional. Trata-se de localizar essa relação na lógica social que a engendra, indagando sobre a gramática dos conflitos que fundamentam sua construção.
Explorando os nexos entre as experiências pessoais e coletivas e processos sociais mais amplos, busca-se apreender o sofrimento enquanto categoria política e moral, valor em disputa, elemento mediador das relações que produz e sobre o qual se produzem narrativas e práticas. O campo da saúde – espaço central de discussão e articulação entre ativistas, lideranças migrantes, membros do governo municipal, associações religiosas e organizações não governamentais – e, mais especificamente, da saúde mental é tomado enquanto objeto privilegiado de investigação, através do trabalho ativo de interpretação e mediação da pesquisadora no acompanhamento de “casos delicados” que desafiam a “rede de cuidados” em constante conformação na cidade. Constituindo um campo semântico catalisador de tensões, o sofrimento presente na experiência dos sujeitos que cuidam e são cuidados se impõe enquanto tema incontornável para se pensar as consequências das desigualdades sociais sobre a vida e as possibilidades de buscá-la (chache lavi), se mover e habitar o mundo.