Até o ano de 2010, o direito à alimentação adequada não estava presente no texto da Constituição Federal Brasileira de 1988, conhecida como Constituição Cidadã. Esse processo de inclusão do direito à alimentação se deu em conjunto com diversas medidas do governo brasileiro desde 2003, sendo a principal delas o Programa Fome Zero. Mais de quinze anos após sua criação, o programa ainda é tema de discussão, apesar de ter sido diluído em diversas políticas de segurança alimentar, e até mesmo políticas de distribuição e geração de renda, as quais foram recentemente encerradas.
Nesse contexto, é objetivo central desta tese compreender as práticas de produção da fome como principal objeto na trajetória das políticas sociais no âmbito do Programa Fome Zero. Ao recuperar a produção do paradigma de Segurança Alimentar e Nutricional em direta relação com uma conformação específica da fome no Brasil enquanto um problema público, pretendo discutir os efeitos de tal promulgação.
Como alguns autores, clássicos da antropologia, já apontavam para a possibilidade de entender a comida como um objeto diferente para aqueles que passam fome e para aqueles que têm suas necessidades satisfeitas, cabe perguntar como a fome é enquadrada na construção prática de uma política pública que precisa definir, medir e avaliar para existir e, assim, como diversos saberes tecnopolíticos trabalham nesse processo de coagulação e transformação da fome.
O texto aqui proposto pretende então lançar luz à maneira em que o fenômeno da fome se transformou ao longo dos anos na “Insegurança Alimentar”, e de que maneira essa transformação influi diretamente nos processos de feitura do Estado. Para tanto, desenvolvo uma etnografia da prática de “dar forma à fome”, através da produção de um “arquivo do Fome Zero”. Busco explorar assim as inter-relações construídas neste processo, as diferentes arenas em jogo e os diferentes dispositivos políticos que se consolidaram em tais planos, compreendendo algumas categorias imbricadas nesta disputa, tais como a noção de direitos, assistência, vulnerabilidade e bem-estar social em ação/circulação/pauta.
Para tornar evidente essa transformação, apresento uma análise dos aparatos institucionais criados a partir do Programa Fome Zero e as estruturas institucionais decorrentes. Trarei também alguns apontamentos sobre a tecnopolítica da fome e por fim, busco elucidar as maneiras pelas quais as tecnologias de estado, relacionadas à fome e posteriormente, à Insegurança Alimentar passam a incidir sobre a vida de uma população, promulgando uma multiplicidade de associações que produzem tanto um “governo da fome” como um “governo pela fome”.