Trabalhadores, empresários e economistas: prisioneiros da aparência

Sobre a ilusória origem da mais-valia*

 

Reinaldo A. Carcanholo**

 

 

"O capitalista individual, ou o conjunto dos capitalistas em cada ramo particular, com horizonte limitado, tem razão em acreditar que seu lucro não deriva do trabalho empregado por ele ou em todo o ramo. Isto é absolutamente exato com referência a seu lucro médio. Até que ponto esse lucro se deve à exploração global do trabalho por todo o capital, isto é, por todos os confrades capitalistas, é uma conexão para ele submergida em total mistério, tanto mais quanto os teóricos da burguesia, os economistas políticos, até hoje não a desvendaram".  Marx

 

 

1. Introdução

 

A teoria do valor-trabalho de Marx tem sido submetida a intensa e sistemática crítica, desde praticamente o seu surgimento, há mais de um século. Todo o esforço dirigido a mostrar seus supostos equívocos ou inconsistências, sem dúvida nenhuma, tem uma elevada motivação ideológica. E não é para menos. Como é óbvio, o que está por trás de toda a discussão e de toda fúria que sustenta tal esforço não é uma preocupação técnica sobre como se determinam os preços, mas a explicação da origem do lucro numa sociedade capitalista.

De fato, ao contrário das teorias de Smith e Ricardo, a teoria marxista do valor tem como conseqüência necessária a conclusão de que o excedente econômico capitalista e, em particular, o lucro é fruto da exploração, do trabalho não pago. Não é possível aceitar integralmente a perspectiva de Marx sobre a riqueza e sobre o valor sem concluir-se que a própria natureza íntima do capital implica uma contradição antagônica entre classes e que ele significa uma violência contra a natureza humana. Nessa perspectiva, o capital é a própria negação do Homem e a teoria de Marx é, por si mesma, radicalmente anticapitalista.

Não é fácil aceitar essas implicações e isso, com muito mais razão, por aqueles setores da sociedade atual que, de certa forma, beneficiam-se através dos privilégios que desfrutam. Mas não é só isso. A própria realidade capitalista, diretamente observada, mostra, de maneira indiscutível, que a origem do lucro empresarial não está no trabalho e muito menos na sua exploração. Nossos olhos não podem negar que ele tem origem diversa da mencionada: capacidade empresarial, tecnologia, grandes volumes de capital comprometidos, entre outros. Talvez fosse aceitável pensar que sua explicação está no conjunto desses fatores e de outros adicionais. Melhor ainda, nos dias de hoje, com o predomínio do capital especulativo, talvez fosse pensar que o lucro tem como origem alguma propriedade imanente e mágica do próprio capital. O fato de que este último conceito, o de capital, não seja muito compreensível não importa. Assim fica até mais fácil pensar que possui propriedades mágicas.

Mesmo que o anterior tenha alguma dose de exagero, uma coisa é certa: a observação da realidade permite concluir que, muitas vezes, o empresário não é um explorador.

Como é possível aceitar a teoria do valor de Marx, com essas conclusões retiradas diretamente da realidade? Afinal, a relação capitalista implica ou não a exploração? O lucro é o não fruto do trabalho não pago? Lamentavelmente a resposta não é trivial. O capital consiste, de fato, em uma relação social que, ao mesmo tempo, é e não é exploradora e isso na própria teoria de Marx. Na aparência, a relação salarial é, por sua natureza e em si, uma relação entre iguais ou, no mínimo, uma relação entre dois indivíduos autônomos e capazes de estabelecer entre si, livremente, um contrato comercial legítimo. Por outro lado, mas ao mesmo tempo, a relação salarial, na essência, implica exploração; ausência de liberdade de uma das duas partes; apropriação pela outra de trabalho não pago. E isso é dialética e não é fácil entendê-la, mesmo quando existe boa-vontade.

Duas características importantes devem ser consideradas, aqui, sobre a aparência na sociedade capitalista. A primeira é que ela não é resultado de um erro ou um engano do observador. Trata-se de uma das duas dimensões da realidade, tão real quanto a sua oposta, a essência. O erro não está na aparência e nem mesmo na interpretação que ela sugere, mas na crença de que a realidade tem uma só dimensão. O equívoco sobre o capitalismo consiste em pensar que a realidade é unidimensional, ou melhor, não saber de sua bidimensionalidade.

Na verdade, existem, nesse aspecto, dois erros teóricos opostos: o empirismo daquele que somente vê a aparência e, por outro lado, o seu contrário, o fundamentalismo, que acredita que só a essência é verdadeira. Este, talvez seja tão nocivo quanto o primeiro. No entanto, poderíamos destacar que, apesar de tudo, a essência deve ser vista como tendo uma superioridade sobre a aparência e talvez por duas razões básicas. Em primeiro lugar por que só ela é capaz de permitir a lógica e estruturada compreensão sobre os nexos mais íntimos da realidade, possibilitando prever as potencialidades do seu desenvolvimento, dos seus destinos possíveis. Em segundo, por que, a partir dela, com os instrumentos que fornece, é possível entender todas as características da aparência, além de explicar a razão pela qual a aparência deve ser necessariamente como é. Em certo sentido, a essência contém dentro de si a própria aparência.

A segunda característica da aparência capitalista que convém destacar aqui é o fato de que ela resulta diretamente da observação da realidade, mas desde um ponto de vista particular, específico: do ponto de vista do ato individual e isolado[1]. Enquanto a essência só é compreensível a partir da perspectiva da totalidade social, a aparência deriva direta e imediatamente de uma visão parcial ou isolada da relação social; em caso extremo, da observação de um específica relação entre um determinado empresário e um trabalhador. Essa relação específica não tem necessariamente de ser de exploração e muitas vezes não o é, de fato, na aparência. E como a ação dos indivíduos na sociedade capitalista só os obriga (ou até os limita) à observação do ato individual e isolado, tendem a ser prisioneiros da aparência e da unidimensionalidade do real. Eles, na sociedade capitalista, não são facilmente capazes de observar a realidade de um ponto de vista global. Se somamos a  isso o fato, destacado antes, de que a aparência é real e não falsa, teremos os elementos necessários para compreender a força da perspectiva empirista.

O fato é que Marx, depois de expor os resultados do seu descobrimento sobre a origem da mais-valia, isto é, a exploração do trabalho, enfrenta a tarefa de utilizar-se dos instrumentos teóricos derivados da essência para "reconstruir", no pensamento, a maneira como ela se apresenta na aparência. Procura explicar como e porquê a mais-valia apresenta-se como lucro, ou melhor, como se processa a dissimulação da origem da mais-valia. E o faz de maneira magistral, embora não de forma completa e totalmente desenvolvida, no livro 3 d'O Capital. Nos dois primeiros capítulos desse livro, Marx expõe o que seriam alguns dos diversos mecanismos, fatores, momentos, aspectos, determinantes, ou dimensões da dissimulação da origem da mais-valia. E segue com essa tarefa em capítulos posteriores. O melhor termo para expressar esses momentos da dissimulação é algo a ser melhor pensado. Por comodidade e sem maior compromisso com seu real significado, usaremos o termo dimensão. Isso, pelo menos, evitará que se pense que eles são paralelos ou progressivos.

Nosso propósito aqui é expor as diferentes dimensões dessa mistificação ou dissimulação; aquelas que foram apresentadas n'O Capital e duas outras não tratadas ali, mas muito importantes. Uma destas, por certo, a que chamamos paradoxo da desigualdade dos iguais, embora não tratada por Marx, encontra em seu texto o caminho para sua descoberta; a outra, não aparece em sua obra talvez por só ter alcançado relevância na realidade social nos dias de hoje.

Comecemos, pois, pela dimensão mais elementar da dissimulação: o conceito de preço de custo.

2. Preço de custo e salário como pagamento do trabalho

 

A primeira dimensão da mistificação ou dissimulação consiste no próprio conceito de preço de custo. O custo ou preço de custo de uma mercadoria nada mais é do que aquela parte do seu valor depois de deduzida a mais-valia. Assim, nessas condições, o preço de custo é o que necessita o empresário para ressarcir-se dos gastos com matérias primas, matérias auxiliares, depreciação do equipamento e instalações e com os salários.

 

Marx preocupa-se em destacar com muita precisão a diferença entre o preço de custo e a magnitude do valor, mostrando que aquele é o custo da mercadoria para o empresário, mas não o verdadeiro custo social:

 

"São duas magnitudes bem diversas  que a mercadoria custa ao capitalista e o que custa produzi-la. Da mercadoria, a parte constituída pela mais-valia nada custa ao capitalista, justamente por custar ao trabalhador trabalho que não é pago"   (Marx, OC 3, p. 30[2])

 

Em que sentido o preço de custo, como uma idéia, arbitrária ou não, é capaz de constituir-se em dimensão (na primeira dimensão) da mistificação da origem da mais-valia?

 

Na verdade, a simples adição, no preço de custo, de duas partes que cumprem funções distintas no que se refere à produção e à valorização é o que leva à dissimulação. Essas duas partes diferentes, que se encontram somadas no preço de custo, são o capital constante consumido (c) e o capital variável (v).

 

Enquanto o valor do capital constante consumido entra por inteiro na produção do valor da nova mercadoria e, portanto, transfere-se para a esta, o valor do capital variável desaparece com o consumo da força de trabalho. Assim, ao mesmo tempo que, na produção, durante uma jornada de trabalho, destrói-se o valor-de-uso diário da força de trabalho, ao consumir-se a capacidade de trabalhar do indivíduo, destrói-se também seu valor. É verdade que essa destruição ocorre justamente para que surja um valor novo, o valor produzido durante a jornada, mas trata-se de um novo valor, diferente daquele que existia na força de trabalho. Esse é um assunto tratado de maneira suficiente, por Marx, nos capítulos 5 e 6 do livro 1 d'O Capital:

 

"Mas esse valor-capital (o capital variável, RC) adiantado não entra absolutamente na produção do valor novo. A força de trabalho  é valor com referência ao adiantamento de capital, mas, no processo de produção, tem a função de criar valor. (Marx, OC 3, p.32)

 

A força de trabalho, no capital, aparece como valor; na produção, como valor-de-uso. O consumo desse valor-de-uso, que é o trabalho, aparece como a ação capaz de criar novo valor.

 

Assim, o que o preço de custo faz ao somar os dois diferentes componentes do valor da mercadoria é torná-los iguais (não é possível somar coisas diferentes); o preço de custo produz uma indiferenciação entre o capital constante e o capital variável[3].

 

"Nessa fórmula, a parte do capital adiantada em trabalho só se distingue da adiantada em meio de produção ... por servir para pagar elemento materialmente diverso da produção, não entrando em conta a função diversa que desempenha no processo de produção do valor da mercadoria ... Extinguiu-se a diferença entre capital constante e variável".   (Marx, OC 3,  pp. 34-35)

 

Para o empresário, aumentar o gasto com materiais e, na mesma magnitude, reduzir os salários, ou o contrário, é, para o que nos interessa aqui, absolutamente indiferente.

 

Dessa maneira, se o excendente-valor capitalista (a mais-valia) é fruto da exploração do trabalho, diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o valor da força de trabalho, como o é na teoria econômica de Marx, o preço de custo "desmente" essa conclusão. A simples idéia de preço de custo (que surge naturalmente na consciência do empresário), ao produzir a indiferenciação das duas formas de capital, faz com que o lucro apareça como resultado não do capital variável, mas da soma das duas. O preço de custo, como idéia derivada diretamente da aparência, é capaz de produzir uma ilusão sobre a origem da mais-valia. Abstraída a diferença entre o capital variável e o capital constante, a mais-valia aparece como acréscimo não do primeiro, mas da soma dos dois, isto é, do preço de custo:

 

..."o capital variável, despendido em força de trabalho, classificado como capital circulante, é, no tocante à formação do valor, expressamente identificado com o capital constante, e assim mistifica-se completamente o processo de valorização  do capital".   (Marx, OC 3, p. 36)

 

Ao mesmo tempo em que o capital constante e o capital variável, através da idéia aparencial de preço de custo, tornam-se iguais (indiferenciam-se, o salário, de pagamento da força de trabalho, aparece como pagamento do trabalho.

 

..."o valor – o preço – da força de trabalho se apresenta como valor – preço – do próprio trabalho, o salário.      (Marx, OC 3, p. 33)

 

E não importa se a idéia é de que o salário chega ou não a ser suficiente para pagar todo o trabalho. Se paga o trabalho e não a força de trabalho, pode até haver exploração, caso ele seja insuficiente para pagá-lo completamente. Mas, dessa maneira, a exploração não é norma, é caso especial que pode até ser mais freqüente ou generalizado, mas não é a natureza mesma do sistema. A exploração, de natureza íntima do capital como se apresenta na teoria de Marx, passa a ser mera circunstância particular que pode ser combatida. Teríamos, assim, os elementos necessários para diferenciar o que seria o lucro "legítimo" e o "ilegítimo" e não seríamos obrigados, eticamente, a exercer nossa oposição ao capitalismo, mas ao selvagem do capitalismo. A diferença, como sabemos, não é pequena.

 

Enfim, com o preço de custo, modifica-se a própria natureza do valor da mercadoria: se em algum momento o entendíamos como

 

V = c + (v + m),

 

com o preço de custo torna-se

 

V = (c + v) + m

 

e a mais-valia, que tem como origem o capital variável, torna-se lucro, cuja origem é o capital por inteiro (c + v). Desapareceu a exploração.

 

3. O capital fixo

 

Como vimos no item anterior, com o preço de custo extingue-se a diferença entre capital constante e variável e, com isso, o lucro parece provir de todo o capital consumido. Observe-se, no entanto, que o capital constante consumido, somado ao necessário aos salários, não é todo o capital necessário à produção da mercadoria. Nele só incluímos a depreciação dos instrumentos, das máquinas, das instalações; em outras palavras, do capital fixo.

 

Para que a mercadoria seja produzida é necessário todo o capital constante (C) e não simplesmente o consumido (c). Para produzir a mais-valia necessita-se não só do capital correspondente ao preço de custo, mas de todo o capital. Logo o lucro tem como origem, provém, não só do preço de custo mas de todo o capital (C+v):

 

"Desse modo, a mais-valia provirá tanto da parte do capital adiantado, absorvida no preço de custo, quanto da parte que não entra nesse preço; numa palavra: igualmente, dos componentes fixos e circulantes do capital utilizado. O capital todo – os meios de trabalho, as matérias de produção e o trabalho – serve materialmente para formar o produto. O capital todo entra materialmente no processo efetivo de trabalho, embora apenas parte dele no processo de valorização. Seria precisamente esta a razão por que só parcialmente contribui para formar o preço de custo e totalmente para formar a mais-valia. Seja como for, sobressai o resultado: a mais-valia brota simultaneamente de todas as partes do capital aplicado". (Marx, OC 3,  pp. 38-39)[4]

 

"Para o capitalista fica então patente que esse acréscimo de valor provém dos processos produtivos, empreendidos com o capital, derivando portanto do próprio capital; pois existe depois do processo de produção e não existia antes". (Marx, OC 3, p. 38)

 

É necessário destacar que capital adiantado ou desembolsado, rigorosamente, é um conceito mais concreto que os de capital total, capital constante consumido e capital constante. Para chegar-se a ele é necessária toda a ampla análise sobre a circulação e, especialmente, a rotação do capital que Marx realiza no livro 2 d'O Capital. Do ponto de vista que nos interessa aqui, isto é, a origem da mais-valia, é o capital adiantado ao que se atribui a origem da mais-valia.

 

 

4. Divergência mais-valia / lucro em cada empresa e mesmo em cada setor

 

Acreditar que a origem do lucro empresarial é a exploração do trabalho tropeça com uma dificuldade adicional. Se essa idéia fosse verdadeira, as empresas com proporcionalmente pouco capital constante e muito variável, isto é, com baixa composição orgânica, deveriam ter maior taxa de lucro que as demais. E é justamente o contrário do que, na maior parte das vezes, um observador qualquer poderia esperar: grandes empresas, com elevado capital em operação, mesmo com um número relativamente reduzido de trabalhadores, com elevado lucro, tanto em termos absolutos (massa de lucro) quanto em termos relativos (taxa de lucro).

 

Se altos lucros podem ocorrer em empresas com relativamente poucos trabalhadores, como é possível pensar que a origem do lucro esteja justamente no trabalho? A observação direta da aparência permite a hipótese exatamente contrária: a origem está no capital e/ou no poder econômico que ele confere; não no trabalho.

 

Para esclarecer essa divergência entre a aparência e a essência, características da sociedade capitalista, são necessários diversos passos que se iniciam pelo estudo da transformação dos valores em preços de produção, continuam com o que poderíamos chamar de preços de monopólio e, no final, chegariam aos preços de mercado, tal como os observamos na superfície da realidade. É indispensável entender, preliminarmente, dois conceitos opostos existentes na teoria econômica marxista: produção e apropriação. Enquanto a produção da mais-valia fica determinada totalmente no nível do valor, de maneira que divergências de magnitude entre preço e valor em nada alteram a sua grandeza, a apropriação só fica determinada no nível mais concreto dos preços de mercado.

 

"Não é mister explicar novamente que, ao vender-se uma mercadoria acima ou abaixo do valor, a mais-valia apenas se reparte de maneira diferente, e essa modificação, essa nova proporção em que diversas pessoas repartem entre si a mais-valia, em nada altera a natureza e a magnitude dela".    (Marx, OC 3, p. 47)

 

Assim, explicar teoricamente as divergências entre a produção e a apropriação da mais-valia significa esclarecer um dos aspectos decisivos da mistificação da origem da mais-valia. E Marx começa esse trabalho pela transformação dos valores em preços de produção.

 

De maneira simplificada e numa primeira aproximação, podemos dizer que preço de produção de uma mercadoria é o valor apropriável na sua venda, que garante ao seu produtor a obtenção do lucro médio, isto é, que garante a uniformidade da taxa de lucro[5].

 

É um erro acreditar que, com a transformação do valor em preço de produção, Marx pretendia exclusiva ou prioritariamente explicar a determinação dos preços de mercado. Não era esse seu propósito ou, pelo menos, não era seu propósito fundamental. O que ele queria, na verdade, era esclarecer um aspecto mais do complexo da dissimulação da origem da mais-valia: a divergência quantitativa entre lucro e mais-valia em cada setor da economia. Exatamente sobre isso, vejamos os três últimos e importantíssimos parágrafos do capítulo II do livro 3 d'O Capital, em que Marx anuncia o que pretende realizar na seção (ou parte[6]) seguinte desse livro (segunda seção), justamente onde analisa a questão da transformação:

 

"Na mais-valia  se põe a nu a relação entre capital e trabalho; na relação entre capital e lucro, isto é, entre capital e mais-valia – onde esta aparece como excedente sobre o preço de custo da mercadoria ... - apresenta-se o capital como relação consigo mesmo ... Sabe-se que produz esse valor novo, ao movimentar-se através dos processos de produção e de circulação. Mas fica dissimulada a maneira como isso ocorre, parecendo que o valor excedente provém de propriedades ocultas, inerentes ao próprio capital. 

 

"E quanto mais seguimos o processo de valorização do capital, mais dissimulada fica a relação-capital, e menos se percebe o segredo de sua estrutura interna.

 

"Nesta parte do livro, a taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia; lucro e mais-valia, entretanto, são considerados grandezas iguais, divergindo apenas quanto à forma. Na parte seguinte veremos como prossegue o alheamento (Veräusserlichung), passando o lucro a desviar-se da mais-valia também quantitativamente." (Marx, OC 3, pp. 51-52)

 

No primeiro dos três parágrafos, o autor está se referindo ao que efetivamente realizou naquele capítulo (II do livro 3), isto é, mostrar a mistificação existente, quando analisou algumas das suas dimensões. No segundo parágrafo afirma que a dissimulação, de fato, é muito maior do que a esclarecida até então e que a continuidade do estudo permitirá entender novas dimensões dela que a fazem ainda mais profunda. Finalmente, no terceiro parágrafo, anuncia seu propósito para a parte seguinte do seu trabalho (a seção correspondente à transformação) que é o de mostrar como prossegue ou se aprofunda o "alheamento", a dissimulação.

 

Observe-se, também, que seu propósito fica claramente expresso nos próprios títulos das duas primeiras seções do livro mencionado: a) "a transformação da mais-valia em lucro" ... e b) "conversão do lucro em lucro médio". Não chama a segunda seção de transformação de valores em preços de produção, mas destaca, no próprio nome, sua preocupação em analisar as divergências quantitativas. Essas divergências quantitativas, como é óbvio, são decisivas na dissimulação da origem da mais-valia.

 

E não é só isso. Na própria segunda seção, quase ao final do capítulo IX, depois já de haver explicado a transformação dos valores em preço de produção, afirma:

 

"Vimos na primeira parte: mais-valia e lucro eram idênticos, quanto à massa. Todavia, a taxa de lucro desde logo se distinguiu da taxa de mais-valia, parecendo ser inicialmente apenas outra forma de calcular; mas, isto desde logo obscurece e dissimula a verdadeira origem da mais-valia, pois a taxa de lucro pode subir ou descer sem que se altere a taxa de mais-valia ou vice-versa ..."   (Marx, OC 3, pp. 189-190)

 

"Até aí, a diferença entre lucro e mais-valia referia-se apenas à mudança qualitativa de forma, só existindo diferença quantitativa, nessa primeira ordem de transformação, entre taxa de lucro e taxa de mais-valia e não de lucro e mais-valia.

"A coisa muda quando se estabelece taxa geral de lucro e por meio dela lucro médio, correspondente à magnitude dada do capital aplicado nos diferentes ramos de produção.

"Agora sabemos que só por casualidade a mais-valia realmente produzida num ramo particular de produção, ou seja, o lucro, coincide com o lucro contido no preço  de venda da mercadoria."     (Marx, OC 3, p.190)

 

Assim, a análise que o mencionado autor realiza constata a existência de divergência quantitativa entre a mais-valia produzida e a apropriada (ou lucro) em cada ramo de produção. Ele passa, então, a apresentar as conseqüências desse fato sobre a aparência da origem do lucro:

 

"A diferença quantitativa real entre lucro e mais-valia ... nos ramos particulares de produção oculta então inteiramente a verdadeira natureza e a origem do lucro, não apenas para o capitalista que tem aí especial interesse em enganar-se, mas também para o trabalhador. Com a transformação dos valores em preço de produção  encobre-se a própria base da determinação do valor. "   (Marx, OC 3, p.191)

 

Agora, não é só o empresário, com o seu interesse objetivo em negar que a origem da mais-valia é a exploração, mas também o próprio trabalhador - cujo interesse seria justamente o contrário (o esclarecimento da natureza íntima da relação salarial) -  vêem-se prisioneiros da visão que deriva necessariamente da aparência capitalista.

 

"E essa imagem plenamente se confirma, consolida e ossifica, quando, na realidade, o lucro acrescentado ao preço de custo, em cada ramo particular de produção, não é determinado pelos limites da formação do valor aí ocorrida, mas por fatores inteiramente externos."   (Marx, O C 3, p. 191)

 

"O capitalista individual, ou o conjunto dos capitalistas em cada ramo particular, com horizonte limitado, tem razão em acreditar que seu lucro não deriva do trabalho empregado por ele ou em todo o ramo. Isto é absolutamente exato com referência a seu lucro médio. Até que ponto esse lucro se deve à exploração global do trabalho por todo o capital, isto é, por todos os confrades capitalistas, é uma conexão para ele submergida em total mistério, tanto mais quanto os teóricos da burguesia, os economistas políticos, até hoje não a desvendaram".     (Marx, OC 3, p. 193)

 

Assim, o empresário, o próprio trabalhador e até os economistas têm razão em acreditar que o lucro não tem origem na exploração. Eles, pensando assim, não são vítimas de um erro de interpretação; a aparência os obriga a pensar dessa maneira; ela é uma das dimensões da realidade e tão real quanto a essência, só que capaz de impedir, como dissemos, uma interpretação adequada da conexão íntima do real. Eles não são capazes, facilmente, de observar a realidade de um ponto de vista global, que é o único que permite a visão da essência; eles estão prisioneiros, em grande medida, do ponto de vista do ato individual e isolado (ou pelo menos parcial); eles são prisioneiros da aparência; ou melhor, da unidimensionalidade do real.

 

 

5. O paradoxo da desigualdade dos iguais

 

A divergência quantitativa, em cada ramo e em cada empresa, entre a mais-valia produzida e o lucro - entre outras dimensões da dissimulação - faz do empresário, do trabalhador e de grande parte dos economistas prisioneiros da aparência. No entanto, como o próprio Marx afirma: a dissimulação prossegue; outras dimensões somam-se às apresentadas até agora.

 

Como é bem sabido, a transformação dos valores em preços de produção, da forma como pensada por Marx, tem como pressuposto duas exigências simultâneas: 1. a igualdade quantitativa entre a soma dos valores e dos preços de produção do conjunto das mercadorias produzidas em todos os ramos econômicos (valor total e preço de produção total) e 2. igualdade quantitativa entre a mais-valia total produzida e o lucro total apropriado.

 

Enquanto a segunda igualdade é, de forma direta, fundamental para que se possa afirmar que o lucro é simplesmente a mais-valia distribuída de maneira diversa de sua produção e, assim, para mostrar que a origem dele é a exploração, a primeira igualdade também o é, só que de maneira indireta. Se o preço de produção total não fosse necessariamente igual ao valor total, sempre haveria uma magnitude daquele que permitiria fazer do lucro um múltiplo qualquer da mais-valia, inclusive para que os fizesse iguais; só que isso seria uma arbitrariedade e, por isso, inaceitável teoricamente.

 

A dificuldade está em que, na transformação completa (incluindo a dos insumos[7]), a igualdade quantitativa entre lucro e mais-valia totais não ocorre, salvo em condições muito especiais (por exemplo, em reprodução simples, a composição orgânica e a rotação do setor que produz bens de consumo suntuários iguais à média). Vejamos o assunto com detalhe, embora de maneira o mais simplificada possível.

 

Suponhamos condições de reprodução simples, rotação anual igual a 1 em todos os ramos. Consideremos a produção anual da economia no período de um ano e a divisão da mesma nos três conhecidos setores: 1. produção de meios de produção, 2. produção de bens de consumo dos trabalhadores e 3. de bens de consumo suntuários. Consideremos também que:

 

ci  = valor do capital constante consumido no setor i, e

ci' = seu preço de produção;

vi = valor do capital variável no setor i, e

vi' = seu preço de produção;

mi = valor da mais-valia produzida no setor i, e

li' = lucro médio do setor i;

 

os subíndices "t" referem-se à magnitude no total da economia, soma das correspondentes magnitudes dos 3 setores.

 

Assim,

 

        Esquema em valores                      Esquema em preço de produção

 

c1

+

v1

+

m1

=

W1

 

c1'

+

v1'

+

l 1'

=

W1'

 

c2

+

v2

+

m2

=

W2

 

c2'

+

v2'

+

l 2'

=

W2'

 

c3

+

v3

+

m3

=

W3

 

c3'

+

v3'

+

l 3'

=

W3'

___________________________             ___________________________

 

Ct

+

Vt

+

Mt

=

Wt

 

Ct'

+

Vt'

+

L t'

=

Wt

 

No lado esquerdo encontra-se a situação, apresentada em termos de magnitudes de valores (unidade de medida: horas de trabalho) e, no lado direito, aparecem as magnitudes anteriores transformadas em preço de produção (unidade de medida: horas de trabalho), supondo-se a transformação inclusive dos insumos[8]. Observe-se que, no esquema em preços de produção, a magnitude do preço de produção total aparece como Wt, igual ao valor total.

 

Facilmente podemos mostrar que, sendo a composição orgânica do setor 3 diferente da média, Mt ¹ Lt', isto é, o lucro total deverá ser, necessariamente, diferente da mais-valia total. Vejamos.

 

Como condição de reprodução simples temos que  W3 = Mt  e  W3' = Lt'. Além disso, uma vez que a composição orgânica do capital do ramo 3 é diferente da média, podemos afirmar que  W3 ¹ W3'. Logo  Mt ¹ Lt'.

 

Isso significa que, em condições de composição orgânica diferente da média no setor 3 (que é o caso mais normal), o lucro total apropriado pelos capitais tem magnitude diferente da mais-valia total e, assim, qualquer observador será obrigado a concluir que a teoria da mais-valia não é capaz de explicar o lucro; que este não pode ter como origem teórica a exploração.

 

Que isso seja mera aparência e que não passe de outra dimensão, mais profunda e mais complexa, da dissimulação da origem da mais-valia é algo que explicaremos logo mais. Antes disso, vejamos outro aspecto da questão. Observemos a composição do valor do total da produção e também a do preço de produção:

 

 

Ct

+

Vt

+

Mt

=

Wt

 

Ct'

+

Vt'

+

L t'

=

Wt

 

Se a mais-valia total tem magnitude diferente do lucro total, então o valor do capital total consumido (Ct + Vt) difere do seu preço de produção (Ct' + Vt'). Mas isso significa que existem duas taxas de lucro (lucro dividido por capital total); uma em valor e outra em preço de produção! Exatamente, mas, para nós, isso não passa de um aspecto mais da dissimulação da origem da mais-valia.[9]

 

Como explicar esse paradoxo: o lucro total difere da mais-valia total? Trata-se do que chamamos paradoxo da desigualdade dos iguais. Seria muito simples dizer que, tratando-se de relação dialética entre a essência e a aparência, não se necessita uma explicação baseada na lógica formal. Estaríamos assim frente a um paradoxo dialético inexplicável pela lógica formal. No entanto, essa não é nossa compreensão sobre o assunto. Para nós, embora a lógica dialética supere a formal, não a pode violar. É por isso que as explicações dialéticas podem ser entendidas através de uma exposição que pressupõe exclusivamente a lógica formal; O Capital de Marx é a prova disso.

 

Apresentemos nossa interpretação sobre o paradoxo. Para isso, podemos partir de qualquer elemento do esquema em valor e de seu correspondente em preço de produção, apresentados acima. No entanto, é preferível escolher algum que seja mais trivial, não submetido a um fetiche tão grande como o lucro e a mais-valia. Partamos de c1; o que é c1? Trata-se do capital constante consumido no ramo I; mais precisamente, é o valor do capital constante consumido. Por outro lado, c1' é o preço de produção desse mesmo capital. O que existe de comum entre c1 e c1'? Resposta: trata-se da mesma substância (os elementos materiais componentes do capital constante consumido pelo ramo I); eles têm em comum o conteúdo material; enquanto um deles indica a grandeza da dimensão valor daquele conjunto de meios de produção, o outro mostra a grandeza da dimensão preço de produção do mesmo conjunto. É como se um estivesse indicando a altura de uma determinada árvore e o outro, o diâmetro máximo do seu tronco. As duas medidas aparecem em número de horas de trabalho e, apesar de que se trata de medidas diferentes, referem-se, ambas, à mesma substância material, ao mesmo conteúdo, ao mesmo conjunto de meios de produção. O conteúdo é o mesmo, mas as medidas referem-se a formas ou dimensões diferentes (valor e preço de produção). Embora a altura e o diâmetro do tronco da árvore tenham medidas diferentes, ninguém poderia imaginar, por isso, que se trata de árvores diferentes.

 

A mesma coisa poderíamos afirmar sobre qualquer outro par de elementos dos referidos esquemas, com exceção dos que representam a mais-valia produzida e o lucro apropriado em cada ramo. Nesse caso, trata-se de medidas das formas de diferentes substâncias: o lucro em certos casos deve corresponder a uma substancia maior que a mais-valia e, em outros, menor. No entanto, se se trata do conjunto da economia, o que diz nossa teoria? Ela afirma que o lucro total não pode ser mais do que a mais-valia total dividida de outra maneira e, por isso, devem ter a mesma substancia: riqueza econômica excedente. Assim, Mt é o valor do excedente econômico capitalista e Lt' é o seu preço de produção. Eles são diferentes!? Obviamente, pois se trata de medidas de duas diferentes dimensões da mesma substancia que tem como origem a exploração do trabalho. O fato de que a altura da árvore e o diâmetro do seu tronco tenham medidas diferentes, não quer dizer que se trata de duas distintas árvores.

 

Vejamos a coisa de outra forma. Se os empresários do ramo I venderem suas mercadorias por um preço de mercado correspondente ao preço de produção, poderão reservar uma parcela do que se apropriarem, correspondente a c1', para comprarem os meios de produção necessários para repor o capital constante consumido. Comprarão esses meios de produção por preços de mercados correspondentes aos seus preços de produção. Podemos perguntar agora: qual é o valor desses meios de produção? Resposta: c1.

 

Da mesma maneira, se os empresários de todos os ramos vendessem suas mercadorias por preços de mercado correspondentes aos seus preços de produção, obteriam como lucro total Lt'. Com essa apropriação, comprariam bens suntuários do ramo III (estamos supondo reprodução simples) para seu consumo. Podemos perguntar agora: qual seria o valor total desses bens de propriedade dos empresários e que seriam destinados ao seu consumo? Resposta: Mt.

 

Um última forma de ver o assunto. Olhemos o esquema em preços de produção, apresentado mais acima. Vejamos o lucro total: ele é Lt'. Trata-se na verdade do seu preço de produção. Mas, qual é o seu valor. Resposta: Mt é o valor do lucro total. Por outro lado, qual seria o preço de produção da mais-valia, cujo valor é Mt? Resposta: Lt'.

 

Em conclusão, o que acontece é que, com a transformação, ao mesmo tempo que se transforma mais-valia em lucro médio, altera-se a dimensão mensurada da riqueza capitalista; de um lado, ela é medida pelo seu valor, de outro, pelo seu preço de produção. Quando procuramos saber se o lucro total é ou não igual à mais-valia total, observamos o valor da mais-valia e  preço de produção do lucro. Obviamente eles devem ser diferentes (salvo nas condições especiais já anunciadas).

 

Assim, justamente por serem a mesma coisa, do ponto de vista da substância, justamente por ser o lucro nada mais que a mais-valia repartida de outra maneira, o lucro total medido em preço de produção deverá ser diferente da mais-valia total medida em valor. Justamente por serem iguais, são diferentes: é o paradoxo da desigualdade dos iguais.

 

Dessa forma, se até o item 4 deste trabalho já podíamos afirmar que empresários, trabalhadores e grande parte dos economistas se vêem prisioneiros da aparência, agora, com esse paradoxo, podemos entender que até mesmo aqueles (ou a maior parte deles, pelos menos) que desejariam ser marxistas, esforçam-se para sê-lo e se sentem como tais sucumbem, de alguma maneira, frente a tão profunda dissimulação.

 

É verdade que Marx, por não chegar a se preocupar em realizar a transformação do lucro em lucro médio, incluindo a transformação em preço de produção dos insumos, não podia perceber o fato de que a mais-valia total apareceria como diferente do lucro total. Muito menos poderia chegar a explicar o paradoxo, como o fizemos. No entanto, se voltarmos a uma passagem já citada antes neste trabalho, localizada no final do capítulo II do livro 3 d'O Capital, podemos observar algo interessante:

 

"Nesta parte do livro, a taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia; lucro e mais-valia, entretanto, são considerados grandezas iguais, divergindo apenas quanto à forma. Na parte seguinte veremos como prossegue o alheamento (Veräusserlichung), passando o lucro a desviar-se da mais-valia também quantitativamente."     (Marx, OC 3, pp. 51-52)

 

Dessa maneira, anunciando o que faria na segunda seção do livro, afirmava que veríamos como o lucro passa a desviar-se da mais-valia também quantitativamente. Não se referiu, nesse momento, ao lugar em que isso ocorre; não afirmou que seria em cada ramo particular. Na verdade, não chegou a afirmar que o desvio também aparece no total da economia; mas também jamais chegou a dizer o contrário! No entanto, talvez seja um exagero pensar que ele tenha chegado a suspeitar da existência do paradoxo.

 

 

6. A circulação

 

Existe ainda, no capítulo II do livro 3 d'O Capital, antes mesmo da seção sobre a transformação, um momento em que Marx se refere, de passagem, à circulação como outra dimensão existente na dissimulação da origem da mais-valia. Trata-se da seguinte:

 

"No processo de circulação aparece, ao lado do tempo de trabalho, o tempo de circulação, que limita a quantidade de mais-valia realizável em determinado prazo. Outros fatores, oriundos da circulação, intervêm, de maneira decisiva no processo imediato de produção. ... entrecruzam-se os caminhos do tempo de circulação e do tempo de trabalho e ambos igualmente parecem determinar a mais-valia;..."       (Marx, OC 3, p. 47)[10]

 

Sem dúvida está aqui pensando no fato de que o tempo de circulação e a rotação do capital  interferem na determinação da taxa de lucro, particularmente no que se refere à taxa anual de lucro de um determinado capital. Dessa maneira, ao lado da produção, a circulação e a rotação parecem entrecruzar-se para a determinação da magnitude do lucro. Surge aqui uma nova dimensão da dissimulação. Lembremos que o problema da transformação, para o autor, aparece não só pela existência de diferentes composições orgânicas do capital mas, também, pela ocorrência de diferentes tempos de rotação do capital. E, como sabemos, este aspecto é também levado em consideração, por Marx, nas análises referentes à transformação do lucro em lucro médio ou do valor em preço de produção.

 

 

7. A sagacidade do empresário

 

No mesmo capítulo mencionado no item anterior, Marx indica ainda uma outra dimensão da dissimulação da origem da mais-valia; esta, referida diretamente à instância dos fenômenos, tal qual podem ser diretamente observados na realidade.

 

Constata o autor que o lucro pode existir mesmo que o preço de mercado não seja capaz de alcançar o correspondente ao valor e, agregamos por nossa conta, ou ao preço de produção. Basta que o preço de venda seja superior àquele que corresponderia ao preço de custo para que exista lucro:

 

"O excedente do valor da mercadoria sobre o preço de custo, embora se origine diretamente do processo de produção, só se realiza no processo de circulação, e a aparência de provir do processo de circulação se robustece porque, efetivamente, em meio à concorrência, no mercado real, depende das condições deste a possibilidade de realizar-se e o grau em que se realiza em dinheiro esse excedente. Não é mister explicar novamente que, ao vender-se uma mercadoria acima ou abaixo do valor, a mais-valia apenas se reparte de maneira diferente, e essa modificação, essa nova proporção em que diversas pessoas repartem entre si a mais-valia, em nada altera a natureza e a magnitude dela. No processo efetivo de circulação ... a mais-valia que os capitalistas, individualmente, realizam depende do logro recíproco como da exploração direta do trabalho."        (Marx, OC 3, pp. 46-47)

 

Isso significa, obviamente, que quanto maior o preço de mercado obtido pelo empresário, maior será o seu lucro e sua taxa de lucro. Assim, o lucro parece provir do processo de circulação[11], como afirma Marx e, muito mais que isso, parece depender diretamente da competência e/ou da sagacidade do empresário. E essa conclusão não consiste em um erro de interpretação de qualquer observador; isso é real, totalmente correto, pelo menos do ponto de vista das ações individuais, do ponto de vista do ato individual e isolado, que é o ponto de vista da aparência.

 

Ninguém será capaz de mostrar, a qualquer observador, que essa não é a conclusão correta; o lucro tem como origem a capacidade empresarial, a competência ou a sagacidade do empresário. Como é forte a dissimulação da origem da mais-valia!

 

 

8. O lucro fictício

 

Finalmente chegamos à ultima dimensão que desejávamos apresentar. Trata-se de uma que não foi sugerida e nem mesmo intuída por Marx. Pelo menos é o que acreditamos. E isso é explicável por ela não haver apresentado, em seu tempo, uma relevância maior, embora, nos dias de hoje, seja absolutamente fundamental para entendermos a lógica do capitalismo e decisiva para a dissimulação da verdadeira origem do lucro.

 

Marx, em muitos momentos, já advertia que a divisão da mais-valia nas diversas formas de lucro e de outros rendimentos e/ou gastos (juros, salários e gastos improdutivos, impostos etc.) funcionava como mecanismo da dissimulação[12]. Destacou, também, que o capital a juros é a forma mais irracional do capital, por ser a que mais esconde o nexo entre a origem do lucro (o trabalho) e ele próprio. Explicou também que, com o desenvolvimento do capital a juros como forma funcional autonomizada do capital industrial, surgia o capital fictício.

 

Essa forma de capital, a fictícia, embora produto necessário da lógica capitalista, até a época de Marx não apresentava volumes exagerados e podia conviver, sem maiores problemas, com o capital industrial. Nas últimas décadas, no entanto, apresentou crescimento explosivo, chegando a comprometer o normal funcionamento da economia capitalista e converteu-se no que chamamos capital especulativo parasitário.[13]

 

O capital fictício e, em particular, o capital especulativo parasitário, do ponto de vista do ato individual e isolado, é um capital real; nas mão de qualquer empresário pode converter-se em qualquer outra forma de capital ou de riqueza real. Por outro lado, do ponto de vista da totalidade é real e fictício ao mesmo tempo; real, por exigir remuneração como qualquer outro; fictício, por não ter substância material nenhuma e em nada contribuir para a produção do excedente, da mais-valia.

 

O crescimento explosivo do capital especulativo parasitário nos dias de hoje tem como sustentação, em especial mas não exclusivamente, a expansão da dívida pública nos diversos países. Caracteriza-se, atualmente, como uma forma privilegiada de valorização e, por isso mesmo, preferencial inclusive para corporações tradicionalmente comprometidas com a lógica da produção.

 

Pois bem, sabemos que, em parte, o destino da remuneração de qualquer capital, do seu lucro (deduzidos impostos e gastos improdutivos), é o consumo dos próprios empresários. No entanto, a maior parcela desse lucro destina-se a incrementar o volume do capital existente, em todas as suas formas: produtiva, comercial, a juros ou fictícia.  De outro ângulo, podemos dizer que qualquer incremento do capital, em qualquer de suas formas, de um ano para o outro, necessariamente provém de seus lucros.

 

O crescimento do capital real, com substância material e capaz de produzir riqueza adicional, só pode provir de um excedente real, produto da exploração segundo a teoria aqui exposta. Mas, o crescimento do capital fictício ocorre sem que corresponda à verdadeira produção de mais-valia. O capital fictício cresce com a expansão da dívida pública, com a valorização especulativa dos ativos em títulos privados ou mesmo dos bens reais (como imóveis) etc. Esse crescimento do capital fictício provém de um lucro que não tem origem na mais-valia; trata-se de um lucro 'fictício' que, na mesma medida do capital especulativo parasitário, é real do ponto de vista do ato individual e isolado e, do ponto de vista da totalidade, é real e fictício ao mesmo tempo. O fato é que, essa remuneração, esse lucro, não tem origem na mais-valia. Trata-se de um lucro fictício. Com isso, a exploração fica ainda mais dissimulada.

 

Com o predomínio do capital especulativo parasitário no capitalismo contemporâneo e com a correspondente relevância do lucro fictício, a dissimulação da verdadeira origem da mais-valia chega a limites insuspeitáveis. Se nos itens anteriores deste artigo concluímos que, desde os empresários, passando pelos trabalhadores e chegando até os economistas (inclusive aqueles que desejam estar entre os marxistas), todos chegavam a ser prisioneiros da aparência, o que podemos concluir agora? Haverá outras dimensões na dissimulação? Prosseguirá ainda mais o alheamento? E por fim, terminaremos todos, nós mesmos, prisioneiros da aparência capitalista? No que se refere, em particular, a nós mesmos e só a nós, esperamos estar imunes a esse pecado.

 

 

9. Considerações finais.

 

Analisamos diferentes dimensões da dissimulação da origem da mais-valia, partindo da mais elementar, o preço de custo, passando pelo surpreendente paradoxo da desigualdade dos iguais e chegando até os lucros fictícios, o que nos levou a concluir que a mistificação alcança limites antes insuspeitáveis. Na verdade, caberia agora uma discussão sobre a relação entre cada uma das diferentes dimensões; até que ponto haveria entre elas sobreposição, paralelismo ou outra relação qualquer. Isso, talvez, nos permitiria justificar adequadamente o melhor termo a ser utilizado para referir-se a elas: se dimensões como preferimos ou mecanismos, fatores, momentos, aspectos, determinantes. Mas, aqui, não há espaço para isso. Contentemo-nos com o que foi feito.

 

Talvez fossem convenientes, antes de concluir, umas poucas palavras sobre a idéia de que o excedente capitalista e, particularmente seu crescimento, tem como fundamento a tecnologia. Essa visão encontra sua origem na teoria de David Ricardo e, especialmente, em sua ingênua perspectiva sobre a natureza da riqueza capitalista[14]. Na perspectiva de Marx, de fato, apesar de que se possa aceitar que, dada a quantidade total de trabalho social, a tecnologia é responsável, desde o ponto de vista do conteúdo material da riqueza, pelo volume do excedente, isso não é suficiente para resolver a questão. O problema é que, para Marx, a riqueza capitalista é unidade de dois pólos, conteúdo e forma e esta é dominante sobre aquele. Assim, do ponto de vista da forma, o excedente é mais-valia ou lucro (que pressupõe uma particular relação social) e sua origem é o trabalho, ou melhor, a exploração do trabalho[15]. Assim, pensar que o lucro é resultado da tecnologia é também cair vítima da idéia da unidimensionalidade, é fazer-se prisioneiro do conteúdo. Mas isso também é um tema que mereceria um tratamento mais amplo.

 



* A versão preliminar deste trabalho foi apresentado no VI Encontro Nacional de Economia Política da SEP, em São Paulo, junho de 2001.

** Professor do Departamento de Economia da UFES.

[1] Para uma melhor compreensão do assunto, ver cap. XXI (Reprodução Simples) de: Karl Marx. O Capital. Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, L.1, V.1, 1980.

[2] Corresponde à: Karl Marx, O capital. Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, L.3, 1981.

 

[3] "A diferença que separa esses dois componentes do valor-mercadoria ...salta ao olhos quando ocorre uma variação alternada na magnitude do valor do capital constante e do capital variável adiantados". (Marx, OC 3, p.32)

[4] Quando Marx se refere ao processo efetivo de trabalho e ao processo de valorização, está se utilizando do que estudou no capítulo 5 do livro 1 d' O Capital. Tais conceitos são os dois pólos contraditórios da unidade denominada processo de produção capitalista e a cada um deles é dedicado uma das duas partes do mencionado capítulo.

[5] Para uma compreensão mais adequada sobre o conceito de preço de produção, cf. Reinaldo A. Carcanholo. "O paradoxo da desigualdade dos iguais: incompreensões ricardianas sobre os preços de produção". Revista Perspectiva Econômica. Vitória, ano I, volume I, número 0, janeiro de 2000. pp. 229-259 e, também, Reinaldo Carcanholo. Dialéctica de la mercancía y teoría del valor. San José – Costa Rica, Educa, 1982. Entendido assim, que nos parece a maneira adequada, o preço de produção e o valor têm a mesma unidade de medida: o tempo de trabalho.

[6] Na tradução da Difel/Civilização, os três diferentes livros d'O Capital aparecem divididos em "partes".

[7] Cf. Ladislaus von Bortkiewicz. "Contribución a una rectificación de los fundamentos de la construcción teórica de M en el volumen III de El Capital".  In: Rudolf Hilferding e outros. Economía Burguesa y Economía Socialista. Cuadernos de Pasado y Presente, nº 49. Buenos Aires/Córdoba, Siglo XXI, 1974.

[8] Para a realização formal da transformação e para uma discussão maior sobre o assunto deste item (“o paradoxo da desigualdade dos iguais”), cf. Reinaldo A. Carcanholo. "O paradoxo da desigualdade dos iguais: incompreensões ricardianas sobre os preços de produção". Revista Perspectiva Econômica. Vitória, ano I, volume I, número 0, janeiro de 2000. pp. 229-259 e, também, Reinaldo Carcanholo. Dialéctica de la mercancía y teoría del valor. San José – Costa Rica, Educa, 1982.

[9] Obviamente que as conclusões de Steedman, prisioneiro da aparência, difere totalmente das nossas. Cf.  Ian Steedman. Marx, Sraffa y el problema de la transformación. México, FCE,  1985. (Título original: Marx after Sraffa).

[10] Há, também, uma outra passagem interessante sobre a questão:

 

"Sem dúvida, durante o processo imediato de produção, o capitalista tem consciência da natureza da mais-valia, conforme demonstra sua avidez por trabalho alheio etc., observada ao estudarmos a mais-valia. Contudo: 1) o processo imediato de produção é transitório, fluindo para o processo de circulação e vice-versa; assim, a idéia que se revela mais ou menos clara no processo de produção, a respeito da fonte do ganho nele obtido, isto é, a respeito da natureza da mais-valia, parece, no máximo, equiparar-se à concepção, segundo a qual o excedente realizado provém do movimento oriundo da circulação, desligado do processo de produção, próprio do capital independentemente de suas relações com o trabalho. ... 2) Na conta de custos ... a extensão de trabalho não-pago toma o aspecto de economia no pagamento de um dos artigos que entram nos custos, de pagamento menor por determinada quantidade de trabalho, como se fosse poupança que se faz comprando matéria-prima mais barato ou reduzindo o desgaste da maquinaria".   (Marx, OC 3,  pp. 47-48)

[11] Robustecendo-se, dessa maneira, o efeito da dimensão apresentada no item anterior.

[12] Talvez até devêssemos incluir esse aspecto como outra diferente dimensão na dissimulação.

 

Marx, falando sobre as diversas formas de lucro, afirma no livro 3, cap. L :

 

"Mas a coisa assume aspecto totalmente diverso na mente dos industriais, comerciantes e banqueiros e também na do economista vulgar. Para eles, o valor da mercadoria, depois de deduzido o valor dos meios de produção, nela consumidos não é um elemento dado = 100, depois repartido por x, y, z. Ao contrário, o preço da mercadoria se compõe simplesmente do valor do salário, do lucro e da renda fundiária, determinados cada um de maneira independente e sem subordinação ao valor da mercadoria".    (Marx, OC 3, pp. 993-994)

 

"Esse produtos da decomposição do valor-mercadoria sempre aparecem como se fossem as condições previas da própria formação  do valor, e o segredo dessa ilusão é simples: o modo capitalista de produção, como qualquer outro, não só reproduz sem cessar o produto material, mas também as relações econômicas e sociais e as formas econômica especificas, adequadas para criar esse produto. Temos assim a permanente ilusão: os resultados parecem condições prévias, e estas, resultados. E esta reprodução permanente das mesmas relações é o que o capitalista individual preliba, considerando-a fato evidente, indiscutível"  (Marx, OC 3, p. 998)

 

[13] Para uma análise detalhada do capital fictício e do capital especulativo parasitário cf. Reinaldo A. Carcanholo e Paulo Nakatani. "O capital especulativo parasitário: uma precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização". Ensaios FEE. Porto Alegre, ano. 20, nº 1, 1999. pp. 284-304 e, também, Reinaldo A. Carcanholo. "O capital especulativo e a desmaterialização do dinheiro”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Letras, nº 8, 2001. pp. 26-45. Algumas das idéias que apresentamos neste item do trabalho aparecem muito mais desenvolvidas nesses artigos.

[14] Sobre a nossa posição sobre o assunto, Cf. Reinaldo A. Carcanholo e Olívio Teixeira. "Sobre a leitura ricardiana de Marx". Ensaios FEE. Porto Alegre, ano 13, nº 2, 1992. pp. 581-591.

[15] Também é verdade que a tecnologia, via produtividade do trabalho no setor que produz bens de consumo dos trabalhadores, é decisiva na determinação do grau da exploração, mas isso é uma outra questão.