Marx, crítico da teoria clássica do valor

 

 

Jorge Grespan*

 

 

Subtítulo de O Capital e presente também no nome de obras anteriores, a crítica da economia política é momento constitutivo da elaboração da própria teoria do capitalismo de Marx. Não se trata, para ele, de proceder a uma comparação ‘a posteriori’ de suas idéias já prontas com outras, mas de referir-se a estas constante e necessariamente como a um ponto de partida, numa operação pela qual se explicitam as identidades e as diferenças que determinam novos significados e articulações. O papel estratégico assim cumprido pela crítica já foi tema de um artigo recente por mim publicado nesta revista,[1] no qual procurei demonstrar sua atuação no conjunto da teoria econômica marxiana, discorrendo sobre seus vários momentos para registrar sua ligação com o conceito de crise. Nesse sentido, o presente texto visa principalmente tornar mais plausíveis as idéias antes apresentadas de modo um tanto genérico, aprofundando o conteúdo de um de seus pontos, não por acaso o fundamento do sistema conceitual de Marx e de sua discussão da economia política: a teoria do valor. É a partir desta base, claramente recortada do conjunto das categorias mais complexas que se seguem a ela na ordem da exposição de O Capital, que será possível entender a dimensão do problema crítico nesta obra como um todo, o seu objetivo e a sua relevância para a elucidação inclusive da posição marxiana sobre o capitalismo.

 

 

I

 

            Da tradição do pensamento liberal-revolucionário inglês do século XVII, os economistas políticos herdaram a noção de que a chave para a compreensão dos fenômenos sociais em qualquer época se encontra nas condições primitivas de sociabilidade, consideradas como um “estado de natureza”. Daí que as investigações sobre economia partissem de situações muito simples, como a troca entre dois produtores individuais, procurando os fatores que as presidiam – no caso da troca, a medida que tornaria possível a comparação de coisas diferentes. Neste contexto, a figura de Robinson Crusoé em sua ilha e as referências feitas a ele pelos economistas, que pretendiam ilustrar sua imagem da racionalidade do “homo oeconomicus” em estado “natural” (as famosas “robinsonadas” dos clássicos, no dizer irônico de Marx, das quais nem Ricardo pôde escapar[2]), não são algo fortuito: correspondem a um pensamento que visa reconstituir as relações sociais a partir dos indivíduos que compõem seus termos, e as relações mais complexas como decorrência das mais simples. A esta concepção e método se deve o papel central da investigação sobre o valor-de-troca para a economia política, que a considera o fundamento da inteligibilidade das formas concretas estudadas. A busca pela determinação no mais simples e abstrato, portanto, concebido como o mais próximo da “natureza” do objeto, orienta os esforços dos clássicos, transparecendo inclusive na crítica de Ricardo à teoria do valor de Smith, pelo menos conforme o entendimento de Marx, que vê esta crítica como tendo “grande significação histórica para a ciência[3].

            Smith, depois de definir o trabalho como a fonte e a medida do valor-de-troca, limita a validade desta proposição àquele “primitivo e rude estado de sociedade, que precede a acumulação de capital [stock] e a apropriação da terra[4]. Numa economia mais complexa, em que ocorram “pagamentos de lucros e renda [da terra – JG]”, aqueles dois fatores teriam uma participação independente do trabalho na formação do preço das mercadorias, devendo somar-se a ele para compor o valor total delas. Exatamente neste ponto incide a crítica ricardiana, que aponta uma inconsistência na dupla definição do valor para Smith: este diz, por um lado, que os três componentes do preço devem ser “medidos pela quantidade de trabalho que podem, cada um deles, comprar ou comandar[5], e logo adiante, por outro lado, que “salários, lucro e renda [rent] são as três fontes originais de todo o rendimento [revenue], bem como de todo o valor-de-troca[6]. A afirmação de que o valor dos produtos é completamente determinado pelo trabalho que os produziu contradiz a dele ser composto por três fatores, dos quais um apenas é o trabalho e os demais são “fontes originais” independentes deste último. Como dirá Marx, a exclusiva determinação pelo trabalho é a teoria “esotérica” do valor de Smith, enquanto que a da soma dos três fatores é sua teoria “exotérica”, tendo ambas dimensões se dividido depois nas duas vertentes da economia política do início do século XIX, representadas, respectivamente, por Ricardo e por Say, e sendo esta última a origem da economia “vulgar”[7].

            Mas a dificuldade aqui não é banal. O problema não passou despercebido a Smith, que não vê, porém, uma contradição entre estas duas definições, procurando ser apenas coerente com o método clássico de fundar no mais simples e primitivo – a determinação exclusiva do valor pelo trabalho – as relações e categorias mais complexas. De fato, se atentarmos para a primeira proposição, ele fala da quantidade de trabalho que se pode “comprar ou comandar”, isto é, do trabalho dos outros que se pode “comandar” diretamente, remunerando-os, ou cujo produto se pode “comprar”. Como o poder aquisitivo para realizar estas operações é adquirido pela venda do produto do próprio trabalho, igualam-se o trabalho produtor de um indivíduo e o trabalho dos outros, que ele “comanda” ou cujo produto ele “compra”. Daí que capital e propriedade da terra, se não são eles mesmos trabalhos produtores, equivalem a este por “comprar ou comandar” trabalho produtor de outros agentes econômicos, numa sociedade mais desenvolvida de trocas. Assim, Smith pensa conciliar as duas definições, pela equivalência entre o trabalho que produz diretamente a mercadoria e o que é “comprado ou comandado” com a renda da terra ou o lucro do ‘stock’.

            Por isso, Ricardo começa seus Princípios de Economia Política e Taxação justamente distinguindo as duas formas de medida igualadas por Smith: “O valor de uma mercadoria [...] depende da quantidade relativa de trabalho que é necessário para sua produção e não da maior ou menor compensação é paga por aquele trabalho[8]. Para ele, o valor das mercadorias se estabelece apenas na esfera da sua produção e não na da sua circulação, ou seja, no intercâmbio que permite o “comando” do trabalho alheio ou “compra” de seu produto. Desfeita a equivalência entre as duas medidas do trabalho, proposta por Smith, suas duas definições do valor se tornam, evidentemente, incongruentes, e Ricardo pode apontar a inconsistência de mantê-las conjuntamente. Se o valor-de-troca depende somente da quantidade de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, os demais fatores não podem ser “fontes” autônomas de valor, determinando apenas sua distribuição social. E o jogo entre a produção e a distribuição do valor, assim distintas, passa a ser o problema central da teoria econômica ricardiana.

            Destacando a importância da correção “esotérica” levada a cabo por Ricardo na teoria clássica do valor, Marx também indica que “ele [Smith – JG] confunde constantemente a determinação do valor da mercadoria pelo tempo de trabalho nela contido com a determinação de seu valor pelo valor do trabalho[9]. E prossegue, agora tratando da conseqüência metodológica: “de modo que esta mudança [tem] o sentido: primeiro, ele apreende a coisa conforme seu nexo interno, depois na forma inversa, como ela aparece na concorrência[10]. A determinação do valor pelo tempo do trabalho produtor da mercadoria constitui, portanto, um nível “interno” que “aparece” num nível externo, no da concorrência ou da circulação das mercadorias, como algo interior que se manifesta. Entretanto, o movimento “inverso” também é caracterizado por Smith, com o valor já de imediato determinado na esfera externa, onde interagem os três elementos mencionados. Por isso, continua a censura de Marx: “Ambas formas de apreensão – em que uma penetra no nexo interno, na fisiologia, por assim dizer, do sistema burguês, e a outra apenas descreve, cataloga, conta [erzählt] e dispõe em definições esquematizadas o que se mostra externamente no processo de vida, tal como ele se mostra e aparece – não só vão ingenuamente lado a lado em Smith, mas se misturam e contradizem constantemente[11]. Penetrar no interior é o caminho da primeira forma, que assim apreende a “fisiologia” do sistema, sua estrutura orgânica e seu funcionamento, em que os diferentes elementos se complementam reciprocamente e se determinam enquanto totalidade pela relação com seu fundamento. A segunda forma, por seu turno, apreende somente o exterior do processo, “tal como ele se mostra e aparece”, sem poder, por isso, dispor seus elementos “fisiologicamente”, organicamente, tendo de apresentá-los desvinculados uns dos outros, limitando-se a “catalogá-los” e a “descrevê-los” individual e isoladamente. A convivência das duas formas em Smith é, de acordo com Marx, a base de suas ambigüidades e contradições, não só porque seguem sentidos inversos, como também por confundirem os níveis “interno” e externo de seu objeto.

            Ainda para Marx, a “grande significação histórica” de Ricardo para a economia política decorre, então, dele ter estabelecido que “o fundamento, o ponto de partida do sistema burguês – da concepção de seu nexo orgânico interno e de seu processo vital – é a determinação do valor pelo tempo de trabalho[12]. Ricardo resolve a tensão entre as duas formas de definição do valor em Smith, assumindo o primeiro caminho mencionado acima, da apreensão do “interior”, do “fundamento” – chamado por Marx de “esotérico”[13]. É a partir daí que o “nexo” imanente pode ser concebido, como um eixo constituinte da organicidade das demais relações econômicas, expressando a “fisiologia” do sistema.

De fato, confrontado com o fato histórico da industrialização inglesa na passagem do século XVIII ao XIX, em que o capital parecia a vários economistas autonomizar-se enquanto “fonte” independente de valor, dando razão à vertente “exotérica” de Smith, Ricardo opta pela alternativa mais trabalhosa, devendo sustentar a permanência do valor-trabalho ainda nas condições da produção fabril. Tal opção implicava, porém, grandes dificuldades teóricas, assim sintetizadas por Marx: “em oposição a Smith, Ricardo destaca a determinação do valor da mercadoria puramente pelo tempo de trabalho e mostra que esta lei predomina inclusive nas relações de produção burguesas que aparentemente mais a contradizem[14]. O próprio projeto teórico de Ricardo pode ser caracterizado por esta tarefa de evidenciar que a “lei do valor” seguia sendo válida, pois as novas condições técnicas e sociais da produção não obrigariam a nenhuma modificação no seu fundamento. Para tanto, era preciso demonstrar que elas decorriam logicamente deste, ou, pelo menos, que elas não estavam em contradição com ele. Ricardo percorre, assim, uma via inversa à de Smith, cuja passagem da definição “esotérica” à “exotérica” se justificava precisamente por uma oposição observada entre as condições “primitivas” de vigência do valor-trabalho e as de uma economia mais complexa. Ele pensa o contrário, e para prová-lo tem de afirmar a validade de seu princípio e a coerência do sistema sobre ele edificado, ou seja, a não-contradição das categorias pelas quais, desde sua base, é concebido o conjunto dos fenômenos econômicos relevantes.

Mas justamente neste ponto começa a objeção de Marx também à formulação ricardiana e à arquitetônica de sua teoria.

Em primeiro lugar, era de se esperar que, tendo apreendido o fundamento do valor das mercadorias, Ricardo o tivesse apresentado em toda a sua pureza, independente de outras categorias dele derivadas, tais como preço, salário etc.. Entretanto, apesar de insistir que o valor-trabalho é a base das relações econômicas reais, ele não o expõe como um ponto de partida autônomo, apresentando aquelas outras categorias ao mesmo tempo, já no início dos Princípios. Seu texto não corresponde, desta maneira, à perspectiva inovadora por ele elaborada a partir da crítica a Smith, parecendo até recair na oscilação deste último, ao confundir os níveis “interno” e externo que ele mesmo tão cuidadosamente distinguira. Mas o problema, para Marx, não está simplesmente na estratégia de exposição; advém do método de investigação empregado por Ricardo e, daí, da apreensão do próprio objeto: “por um lado, deve-se repreender que ele não tenha ido longe o suficiente, não tenha completado suficientemente a abstração; assim, por exemplo, quando ele concebe o valor da mercadoria, ele se deixa influenciar por considerações a todos os tipos de relações concretas. Por outro lado, [deve-se repreender] que ele tenha apreendido a forma de manifestação imediatamente, diretamente, como prova ou exposição da lei geral; de modo algum ele a desenvolve. Em relação ao primeiro [aspecto], sua abstração é incompleta demais; em relação ao segundo, ela é abstração formal, que é falsa em si e por si[15].

Objeção paradoxal de Marx: a “abstração” ricardiana é insuficiente e, simultaneamente, exagerada, no sentido de que haveria um hiato entre a lei do valor enquanto fundamento e as “relações concretas”, que em vez de deduzidas dele, aparecem então, como estando no mesmo nível. Examinemos, então, mais de perto o comentário. Na segunda parte do texto, Marx afirma ser o erro de Ricardo o de ter estabelecido uma relação “imediata” entre a “lei geral” e sua “forma de manifestação”, entre o interno e o externo, como se esta fosse mera “prova ou exposição” daquela. Eliminam-se, com isso, as mediações pelas quais deveria passar uma verdadeira dedução. Simplifica-se a idéia de “ex-posição” do fundamento nas suas “formas de manifestação”: estas aparecem “imediatamente”, “de modo algum” desenvolvidas, isto é, derivadas das próprias determinações do fundamento. Conceitos como dinheiro e capital são supostos como dados, são postos ao lado do fundamento-valor e não decorrentes dele, como se não resultassem de sua “exposição”. Mas isto ocorre justamente porque a abstração pela qual Ricardo alcança a lei do valor é “insuficiente”, porque ele não consegue chegar a esta lei sem o concurso daqueles conceitos. Os dois aspectos da objeção de Marx se complementam, deste modo, como os lados opostos da figura completa de sua crítica.

E ele prossegue, dizendo: “O método de Ricardo consiste nisso: ele parte da determinação da magnitude de valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e investiga então se as demais relações e categorias econômicas contradizem esta definição de valor ou até que ponto elas a modificam. À primeira vista já se percebe tanto a legitimidade histórica deste tipo de procedimento, sua necessidade científica na história da economia, quanto, simultaneamente, sua deficiência científica, uma deficiência que não só se mostra  no modo de exposição (formalmente), mas que conduz a resultados errados, pois ela salta sobre termos médios necessários e busca imediatamente a congruência de categorias econômicas entre si[16]. Novamente Marx assinala aqui a dificuldade de Ricardo apreender e expor todas as mediações da sua apresentação categorial e, mais especificamente, de conceber resultados que contrariem seus pressupostos, passando por conceitos intermediários contraditórios. A forma de exposição proposta por Marx requer, por outro lado, que os conceitos se deduzam da própria contradição entre eles e seu fundamento. É a riqueza dos aspectos diferentes deste fundamento que se desenvolve, ao explicitar a sua oposição interna em categorias conflitantes, gerando-se um processo cuja necessidade decorre justamente deste conflito. Se, em Ricardo, a desconsideração das oposições intermediárias sempre deixa de lado um dos lados opostos, resultando em unilateralidade, na exposição de Marx todo um conjunto de “termos médios necessários” é desenvolvido: a distinção entre valor e valor-de-troca, entre forma relativa e forma equivalente do valor e, em especial, a dedução do dinheiro a partir da mercadoria.

Mas por que todo este desenvolvimento não aparece nos clássicos? Por que nem seus “maiores representantes”, no dizer de Marx[17], tiveram a preocupação de definir tais conceitos e de deduzi-los uns dos outros? Será que se deve atribuir tal “deficiência” simplesmente a um método errôneo de exposição?

A forma da exposição por eles adotada não é casual. No caso específico de Ricardo, como vimos acima, o objetivo é demonstrar que os conceitos simplesmente não contradizem a teoria do valor, é “buscar imediatamente a congruência das categorias econômicas entre si”, para assim comprovar que a “lei do valor” poderia se manter como chave explicativa mesmo em condições econômicas mais complexas do que as do “primitivo e rude estado natural” descrito inicialmente na Riqueza das Nações. O afã de realizar seu programa teórico faz com que ele se aferre ao princípio lógico-formal da não-contradição e incorra assim, aos olhos da dialética de Marx, no erro da unilateralidade. Esta unilateralidade não é apenas um problema metodológico, porém. Deve-se indagar quais categorias são assim desconsideradas e, mais ainda, por que o são. Ou seja, é preciso esclarecer o que é obscurecido pelo apego da economia política ao princípio da não-contradição, e o que, uma vez ultrapassado este princípio pela dialética, passa a ser por ela revelado. O que revela, então, a contradição já no fundamento da economia?

É com a resposta a estas questões que se ocupará a seqüência do presente texto.

II

O aspecto mais conhecido da crítica de Marx à economia política é o de que esta considera suas categorias como formulações universais e eternas da realidade social, correspondendo justamente ao que Locke chamava de “estado de natureza”, esfera logicamente anterior ao pacto político e imune às variações históricas. No caso da teoria do valor, a objeção marxiana significa que as formas típicas da sociedade capitalista e mercantil são assim generalizadas e vistas como fundantes de qualquer forma social, sendo, portanto, inevitáveis.

Mais especificamente, porém, uma conhecida nota de O Capital repreende a economia política, porque ela “trata a forma-valor como algo totalmente indiferente ou exterior à própria natureza da mercadoria. O motivo não é só que a análise da magnitude do valor absorve completamente sua atenção. Ele é mais profundo. A forma-valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata e também a mais geral do modo de produção burguês, que por este meio é caracterizado como um tipo específico de produção social e, com isso, simultaneamente, como um tipo histórico. Daí que, se ela for tomada [versieht] pela forma natural eterna da produção social, então se passará por alto [übersieht] necessariamente pela especificidade da forma-valor, portanto, da forma-mercadoria, desenvolvida em seguida na forma-dinheiro, forma-capital etc...[18]. A generalização das condições burguesas deixa escapar a peculiaridade do passado e a do presente; ou seja, não só significa um anacronismo no estudo das sociedades anteriores, mas também esconde o fato da capitalista constituir “um tipo histórico”, que surgiu em certo momento e que está igualmente fadado a desaparecer. A crítica de Marx, contudo, vai além disso, indicando a incapacidade da economia política apreender o valor enquanto “forma” determinada, que não é “indiferente ou exterior à natureza da mercadoria”, existindo, portanto, apenas dentro das condições da produção mercantil. “A forma-valor do produto do trabalho” só se verifica quando este “produto” assume a “forma-mercadoria”, o que nem sempre é o caso[19]. A identificação de produto e mercadoria pelos clássicos fez com que eles afirmassem que a produção tem a troca como sentido principal, pelo menos se valerem as condições “naturais”, e, assim, que todo produto tem valor. Se para Marx, entretanto, nem todo produto é mercadoria e tem valor, há uma distinção na própria forma social do trabalho, que sempre cria produto mas nem sempre produto com valor.

Assim, ele reconhece que “a economia política analisou, é verdade, embora imperfeitamente, o valor e a magnitude de valor e descobriu o conteúdo oculto nestas formas”, pois apontou o trabalho produtor como “conteúdo” da “forma”-valor, isto é, do valor-de-troca. Por outro lado, a “imperfeição” da análise dos clássicos é explicada na continuação do mesmo texto, que prossegue: “mas ela também nunca sequer colocou a pergunta de por que este conteúdo adota aquela forma, por que o trabalho se apresenta no valor, e a medida de trabalho, conforme a sua duração, [se apresenta] na magnitude de valor do produto de trabalho?[20]. Ao solucionar este enigma através da definição do trabalho abstrato, Marx simultaneamente apresenta uma poderosa objeção à eternidade das categorias da concepção clássica, propondo que só numa economia mercantil a sociabilidade dos produtos é estabelecida mediante o valor, ou seja, pelo cálculo socialmente realizado do trabalho abstrato. Este último, historicamente específico, é a “forma” social pela qual se relacionam os trabalhos imediatamente privados e concretos de uma economia de produtores autônomos, suposto dos clássicos aceito como ponto de partida crítico por Marx. Constitui a base, deste modo, do “universal concreto” – efetiva e objetivamente determinado pelo intercâmbio social – que ganhará expressão mais evidente nas formas dinheiro e capital.

Por outro lado, ele chega à definição do trabalho abstrato problematizando e corrigindo o raciocínio de Ricardo, cuja “atenção estava completamente absorvida” pela “análise da magnitude do valor”, como dizia acima o texto da nota 17. O valor consistia, para a economia política em geral, numa determinação puramente quantitativa, levando Marx a observar que ela “não distingue expressamente e com clara consciência em lugar algum o trabalho, como se apresenta no valor, do mesmo trabalho, conforme se apresenta no valor-de-uso de seu produto. Naturalmente, ela faz de fato a distinção, pois considera o trabalho ora quantitativamente, ora qualitativamente. Mas não lhe ocorre que a simples diferença quantitativa dos trabalhos pressupõe sua unidade ou igualdade qualitativa, sua redução a trabalho humano abstrato[21]. Nem Ricardo chegou a enunciar o conceito de trabalho abstrato, porque o considerava exclusivamente do ponto de vista da magnitude, separando de maneira absoluta o lado qualitativo do quantitativo na sua análise do valor. Não pôde perceber então, diz Marx, que, ao buscar o invariável através das variações quantitativas da troca de mercadorias, deveria de fato procurar aquela propriedade única que permanece como uma qualidade igual a todas enquanto mercadorias, e não enquanto meros produtos. Não pôde, assim, enxergar que a dimensão quantitativa também pressupõe a qualitativa, e que não apenas a exclui. Sua simples diferenciação analítica dos dois lados teve de ser, portanto, substituída pela figura lógica da “oposição”, da simultânea inclusão e exclusão mútuas, dialeticamente estabelecida por Marx.

Esta opção metodológica fez a economia política considerar a expressão da troca de duas mercadorias enquanto mera equação de suas magnitudes, e não como relação que levasse em conta também o aspecto qualitativo. Incorreu, com isso, numa dificuldade ao tentar fundamentar a troca em algo imanente às coisas trocadas, pois este algo teria de ser qualitativamente definido, contrariando a pureza quantitativa da equação dos valores. Autores como Bailey puderam então objetar que o valor-de-troca seria uma expressão estabelecida apenas no momento da troca, não representando nada de imanente à mercadoria, que poderia ser definida sem maiores problemas como simples produto, valor-de-uso. Marx registra esta objeção já nas primeiras páginas de O Capital[22], interessado em apontar a unilateralidade da abordagem ricardiana do valor e a conseqüente necessidade de superá-la, para entender a passagem não apenas do valor-de-troca ao valor – da expressão externa ao conteúdo interno, caminho que Ricardo conseguiu percorrer – mas também a do valor ao valor-de-troca – do elemento intrínseco à sua expressão. Tratava-se de explicar efetivamente a troca pelas leis do valor, o que só foi possível a Marx por levar em conta a recíproca determinação de qualidade e quantidade, na definição do trabalho que ao mesmo tempo cria valor-de-uso e valor: só porque a mercadoria já individualmente considerada é produto de ambas dimensões do trabalho, é que a expressão de sua troca por outra mercadoria se constitui enquanto relação, e não mera equação; na relação, a oposição interna entre o lado qualitativo e o quantitativo se manifesta como oposição externa das duas mercadorias em funções contrapostas[23]. A troca aparece, deste modo, como relação entre a mercadoria na forma-relativa do valor e a que representa sua forma-equivalente.

A partir daí, como se sabe, a oposição das duas mercadorias já na sua expressão simples de troca é desdobrada por Marx, dialeticamente, na oposição das suas formas desenvolvidas, até chegar à que se estabelece entre mercadoria e dinheiro – forma-relativa universal e forma-equivalente universal[24]. De fato, é desde a análise da mercadoria, reveladora da oposição entre valor-de-uso e valor, que Marx consegue expor o movimento progressivo da negação e assim deduzir o dinheiro enquanto resultado da manifestação e desdobramento sucessivo daquela oposição elementar. E aqui se apresenta de novo sua crítica, pois os economistas políticos só percebem o lado da identidade entre mercadoria e dinheiro, que é peça fundamental de sua argumentação contra o mercantilismo: o dinheiro não é fonte privilegiada da riqueza por ser uma mercadoria como as outras[25]. Nesta polêmica, Marx assinala a unilateralidade da perspectiva clássica, que reduz o dinheiro a simples mercadoria, ser ver que a função dele deriva da própria lógica da troca e que, desta maneira, ele também difere das mercadorias, opondo-se a elas.

A conseqüência desta visão unilateral, contudo, é que o dinheiro de certa forma desaparece no intercâmbio mercantil[26]. E Marx acrescenta, comentando uma conhecida proposição da economia política: “‘produtos’, diz Ricardo seguindo Say, ‘são sempre comprados por produtos ou serviços; o dinheiro é só o meio pelo qual a troca é realizada’. Aqui, portanto, primeiro se transforma a mercadoria, na qual existe oposição entre valor-de-troca e valor-de-uso, em mero produto (valor-de-uso) e, daí, a troca de mercadorias em mera permuta de produtos, simples valores-de-uso[27]. Entende-se, assim, o alcance da identificação de produto e mercadoria, que não é fruto de uma confusão acidental dos economistas, mas está associada à redução da forma-dinheiro à forma-mercadoria, para igualar a troca à permuta direta ou escambo. Mas além disso, prossegue Marx, a identificação das duas formas impede que se defina a transição de uma a outra como “metamorfose”, mudança de forma em que o valor aparece como mercadoria que passa a dinheiro – venda (M-D) – e depois como dinheiro que passa a mercadoria – compra (D-M).

Numa última figura da oposição elementar dentro da esfera da circulação simples, Marx desdobra a relação dialética entre mercadoria e dinheiro na relação entre compra e venda. O movimento aqui percorre ainda os mesmos dois pólos (M e D), mas em sentido inverso, oposto, numa nova relação cuja unidade é o processo total do ‘vender para comprar’ (M-D-M), expressão que revela a finalidade do intercâmbio como sendo o de articular o sistema dos produtores privados de mercadorias especializados pela divisão social do trabalho, ao permitir que cada um compre os valores-de-uso de que necessita com o dinheiro obtido pela venda da mercadoria por ele produzida.

Atingido este ponto, em que as categorias essenciais da reconstrução marxiana da teoria do valor se apresentam com conteúdo já suficientemente elaborado, impõe-se a reflexão sobre seu sentido. Cabe, em primeiro lugar, perguntar pelo alcance das distinções conceituais que Marx tão cuidadosamente propôs onde a economia política via só identidades. Distinções, é crucial lembrar sempre, formuladas por ele como oposições e não simples diferenças. Sem dúvida, seu método não é casual, indiferente ao conteúdo tratado, nem era o caso, para ele, de apenas proceder a uma ‘correção’ dos ‘erros’ dos clássicos com intenção simplesmente especulativa. Qual é, então, o significado crítico da exposição paradigmaticamente executada em O Capital, tanto para a discussão do capitalismo quanto da economia política? E que ganho teórico pode advir de uma reconstrução dialética desta disciplina? Uma nova dimensão deve se esclarecer em seu objeto, profunda o bastante para alterar até a definição dele. Reexaminemos atentamente o desenvolvimento categorial acima apresentado.

A identificação, detectada por Marx e feita pelos clássicos, de produto com mercadoria e desta com dinheiro, como vimos, levou estes últimos também a reduzir a troca mediada pelo dinheiro a uma simples permuta de produtos, considerando sem importância a diferença entre compra e venda. Imaginavam, assim, uma contínua sucessão de vendas e compras, pois o objetivo de vender o próprio produto só poderia ser o de depois comprar para consumir produtos de outros, sendo o dinheiro apenas o instrumento a facilitar o trânsito entre os dois momentos, instrumento não desejado por si mesmo. Deste modo, à proposição ricardiana de que “produtos são comprados por produtos”, segue-se outra, também comentada por Marx: “Ninguém pode vender sem que um outro compre. Mas ninguém precisa comprar imediatamente, por ter vendido. A circulação rompe as barreiras temporais, locais e individuais da troca de produtos, justamente porque divide a identidade imediata existente entre a troca [Austausch – o ato de entrega na troca] do próprio produto de trabalho e a troca [Eintausch – a recepção] do alheio na oposição de venda e compra[28]. Concebendo-se a troca enquanto permuta sem intermediação do dinheiro, como faziam os clássicos, há uma “identidade imediata” entre os atos de cada um dos agentes que trocam produto por produto, embora já apareça a distinção, para cada um deles, entre o ato de ceder seu produto e o de receber o do outro. Se a troca for intermediada pelo dinheiro, no entanto, fica evidente um erro no argumento de Ricardo: ele infere, de uma situação em que há dois agentes e um movimento de troca – no qual simultaneamente o que um está comprando o outro está vendendo – uma regra de equilíbrio válida também para uma outra situação, em que há um agente e duas fases de troca, ou seja, em que o agente único primeiro vende sua mercadoria e depois compra as dos outros. No primeiro caso, é claro que há coincidência de compra e venda e “ninguém pode vender sem que um outro compre” ao mesmo tempo. Mas no segundo caso, não; o mesmo agente pode reter o dinheiro por um tempo, depois de ter vendido sua mercadoria e antes de comprar outras, ou pode levá-lo a outro lugar e lá adquirir o que deseja. A “imediatidade” é rompida pela mediação do dinheiro, e, mais do que mera diferença, configura-se uma “oposição”. Daí o papel estratégico da dedução do dinheiro por Marx, que o define como um mediador cuja função essencial leva à sua relativa autonomização face ao mundo das mercadorias.

E, com isso, sua crítica toma um rumo claro: “Ricardo aqui também se baseia na proposição de James Mill, por mim anteriormente elucidada, do ‘equilíbrio metafísico de compras e vendas’ – um equilíbrio que vê apenas a unidade, mas não a separação nos processos da compra e da venda[29]. Este equilíbrio, depois extrapolado para os que existiriam também entre demanda e oferta e entre consumo e produção[30], passou à tradição da teoria econômica com o nome de ‘lei de Say’ – um dos seus princípios de maior importância, aliás, surpreendida e refutada já no nascedouro por Marx. Ele caracteriza os equilíbrios assim propostos como “metafísicos”, por desconsiderarem uma das duas dimensões centrais dos processos que tentam explicar, concentrando-se unilateralmente só na da sua identidade. Mas se o dinheiro é oposto à mercadoria e tende a dela se autonomizar, o mesmo sucede com a compra e a venda, que podem se “separar”, interrompendo o fluxo da circulação de mercadorias. A economia política supõe, de certo modo, o que deveria provar.

E Marx arremata: “A dificuldade de transformar a mercadoria em dinheiro, de vender, surge simplesmente de que a mercadoria deve se transformar em dinheiro, mas este não imediatamente deve se transformar em mercadoria, ou seja, venda e compra podem se separar. Dissemos que esta forma contém a possibilidade da crise, isto é, a possibilidade de que momentos que pertencem um ao outro, que são inseparáveis, se rompam e que sejam violentamente reunidos. Sua copertinência é imposta através do poder que forçou a sua recíproca autonomia[31]. Chegamos, finalmente, ao conceito estratégico de toda a reconstrução categorial da teoria do valor por Marx, visível através de seu negativo: a interrupção no movimento de compras e vendas configura a crise, momento no qual a oposição nas formas anteriores assume o caráter extremo de autonomia de seus termos, com a retenção do dinheiro nas mãos dos vendedores de mercadorias[32].

O lado da diferença na relação entre venda e compra se manifesta como se estes dois termos fossem independentes, indiferentes um ao outro, como se vender e comprar não estivessem inseridos no mesmo processo. Numa crise, todos querem vender e adquirir valor na sua forma universal, dinheiro; todos querem se desfazer de seus produtos, porque os produziram com a única intenção de vendê-los e obter dinheiro. Mas esta estranheza recíproca dos dois momentos é apenas resultado de um processo de autonomização, determinado pelo mesmo nexo que também une necessariamente os termos relativamente independentes, fazendo que eles se definam mutuamente, que eles “pertençam um ao outro”. É este aspecto da unidade dos opostos que impede sua completa autonomia; a impossibilidade da separação se explicita violentamente. A crise não significa, assim, somente a paralisia do movimento de vendas e compras, mas também que sua continuidade é condição ‘sine qua non’ da distribuição de produtos e da divisão do trabalho numa sociedade mercantil. Toda a circulação de mercadorias é por ela colocada em xeque.

Portanto, é a oposição dos dois momentos complementares que define a crise, de acordo com Marx: “os economistas que recusam a crise se apegam apenas à unidade destas duas fases. Se elas fossem somente separadas, sem serem uma, então não seria possível nenhum estabelecimento violento de sua unidade, nenhuma crise. Se elas fossem apenas uma, sem serem separadas, então não seria possível nenhuma separação violenta, o que novamente é a crise. Ela é o estabelecimento violento da unidade entre momentos autonomizados e a autonomização violenta dos momentos que são essencialmente um[33]. Esta dialética da mútua determinação e negação entre a dimensão da unidade e a da diferença dos dois momentos dá à crise seu aspecto violento, pois na afirmação de uma das dimensões a outra não desaparece, mas sim cobra sua existência como o negativo constituinte da que se afirma. Em outras palavras, não haveria problema algum em ficar com o dinheiro depois de vender sua própria mercadoria – uma diferença de termos indiferentes –, se o vendedor não fosse obrigado, cedo ou tarde, a comprar outras mercadorias para atender suas necessidades de consumo. A unidade pressuposta irrompe, assim, com força na separação. Por outro lado, também não haveria problema no fato do dinheiro simplesmente não poder ser retido – uma unidade de termos idênticos –, imaginando que “produtos se trocam por produtos”, se a crise não tivesse criado dificuldades para vender e, daí, um desequilíbrio entre vendas e compras. É a autonomização se manifestando violentamente contra a unidade aqui perdida.

A esta última falsa alternativa se apegam os economistas clássicos, que “recusam a crise [porque] se apegam apenas à unidade destas duas fases”. Seu erro, conforme a crítica marxiana, não consiste simplesmente em não ter visto a dimensão da diferença na complexidade de seu objeto, mas em ter de “recusar” esta dimensão, porque ela revelaria seu objeto como algo contraditório. Negar a crise é também negar a contradição, impossível de ser pensada por Ricardo, como vimos no item anterior. Por isso, num texto importantíssimo e relativamente pouco conhecido, Marx afirma que “o palavrório apologético para recusar a crise é importante na medida que ele sempre demonstra o contrário do que ele quer demonstrar. Para recusar a crise, ele afirma a unidade onde existe a oposição e a contradição. Ele é, portanto, importante, pois se pode dizer que demonstra que, se não existissem de fato as contradições por ele exorcizadas [wegphantasiert], também não existiria nenhuma crise. De fato, porém, existe a crise, porque aquelas contradições existem. Cada razão que eles alegam contra a crise é uma contradição exorcizada, e daí, uma contradição real, um fundamento para a crise. O querer exorcizar as contradições é simultaneamente a expressão de contradições realmente existentes, que por um desejo piedoso não deviam existir[34]. Dialeticamente, revela-se o que se queria manter oculto, pois as categorias da economia política não permitem entender as crises como manifestação de um fundamento real, de modo que, quando elas ocorrem, sua incapacidade explicativa fica clara. Mas o crucial aqui é que “de fato, existe a crise”, ou seja, que a crise é um fato que se impõe à ciência. Porque ocorre este fato, somos obrigados a admitir e incluir a contradição como a forma de constituição do conteúdo das relações mercantis-burguesas; a existência da crise supõe a da contradição. Pode-se avaliar, diante disso, a estratégica importância do conceito de crise, pois é devido a ele que se altera radicalmente a definição daquele sistema econômico: é a necessidade de explicá-la endogenamente que determinará a própria concepção dialética do capital.

Não era o caso, para Marx, portanto, de apenas proceder a eventuais ‘correções’ dos clássicos com mero interesse especulativo, mas de criticá-los profundamente, reconstruindo sua teoria desde o conceito de valor, a partir do reconhecimento do “fato” das crises com todas as suas implicações. Por isso, sua elaboração teórica é eminentemente crítica e, mais ainda, crítica do  capitalismo em primeiro lugar, onde ele encontra a contradição fundante explícita objetivamente nas crises. Daí, desta crítica de base, ele deriva a sua crítica à economia política, indicando justamente que esta disciplina é incapaz de explicar as crises como algo inerente à ‘natureza’ mesma do capital. Por mais “científico” que ele reconheça ser Ricardo, como exemplo privilegiado, a perspectiva unilateral de que padece sua teoria confere até a ela, pela conseqüente recusa da crise e da contradição, um aspecto “apologético”. Realmente, Marx sugere um “querer exorcizar as contradições”, uma intenção de “recusar a crise”, de “alegar razões contra” ela, por parte dos economistas clássicos em geral, para que o sistema de mercado apareça como perfeito alocador de recursos. De modo que, se a busca pela explicação imanente da crise levou Marx à contradição, pode-se legitimamente inferir que a finalidade de “recusar a crise” leva, ao contrário, a economia política a descartar a contradição, motivo talvez mais importante do que o mero apego a um princípio da lógica formal tradicional.

Se isso é válido para os clássicos em geral, não o é para todos do mesmo modo. O exemplo de Ricardo é mais uma vez notável pela sua lei da queda da taxa de lucro, que abre campo para perceber os limites do sistema. De qualquer maneira, porém, esta sua formulação se apresenta apenas na relação entre os rendimentos agrícolas e o lucro, estando completamente ausente no seu fundamento, a teoria do valor. Aqui ele segue inteiramente a Say e Mill, como vimos, e constrói seu raciocínio “afirmando a unidade onde existe a oposição e a contradição”, de acordo ainda com o texto citado imediatamente antes. Assim, retomando o caminho da crítica de Marx às categorias pelas quais a economia política pensa a circulação simples, ele diz, “As crises são aqui recusadas, porque são esquecidos ou negados os primeiros pressupostos da produção capitalista, a existência do produto enquanto mercadoria, a duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, os daí  decorrentes momentos da separação no intercâmbio de mercadorias e, finalmente, a relação entre dinheiro ou mercadoria com o trabalho assalariado[35]. Se a contradição foi reconhecida em função da existência em geral das crises, também as categorias da teoria do valor devem ser redefinidas para conseguir explicá-las. É por isso que Marx distingue diferenças onde a economia política enxergava só identidades e que, ainda mais, estas diferenças se configuram como oposições, na forma já da contradição fundamental. No texto acima, os passos principais da exposição e dedução das categorias da circulação simples de Marx são recapitulados, evidenciando o quanto a sua elaboração e seu movimento dialético dependem da mudança radical de ponto de vista operado pelo reconhecimento da realidade das crises. O fundamental, então, é que “são esquecidos ou negados os primeiros pressupostos da produção capitalista”.

Completa-se, com isso, a crítica: “para provar que a produção capitalista não pode conduzir a crises, todas as condições e determinações formais, todos os princípios e ‘differentiae specificae’ [diferenças específicas, em latim no original], numa palavra, a própria produção capitalista são negadas. De fato, é demonstrado que se o modo de produção capitalista , em vez de ser uma forma própria, especificamente desenvolvida, da produção social, fosse um modo de produção recuado aos mais rudimentares começos, então não existiriam as oposições e contradições que lhe são peculiares e, daí, também sua erupção [Eklat] nas crises[36]. O objetivo de “provar que a produção capitalista não pode conduzir a crises” é o que leva, portanto, a economia política a não deduzir as “determinações formais”, as categorias já da circulação simples, com o que fica apagada a própria especificidade histórica do capitalismo na sua base mercantil. A forma mesma da exposição, cujas dificuldades foram o tema do primeiro item do presente trabalho, está ligada, deste modo, à condição histórica deste sistema, através da apreensão da crise. Ao deixar de lado os conceitos diferenciais desenvolvidos por Marx, a teoria clássica do valor reduz o seu mundo “aos mais rudimentares começos”, ao “estado natural” de Locke retomado por Smith e Ricardo, como vimos. E, assim procedendo, perde na origem o fim do sistema, nega o seu caráter histórico, transitório, de sociedade que tem não só um começo real como também um termo – a sua crise. A finitude do capitalismo, como ganho essencial da reconstrução teórica de Marx, emerge, então, da relação profunda entre a crise e a crítica, finalmente reencontrada.



* Professor do Departamento de História da USP.

[1] Jorge Grespan.. "A crise na crítica à economia política". Crítica Marxista. no. 10, São Paulo, Boitempo Editorial. 2000.

[2] Cf. Karl Marx. Das Kapital, tomo 1, MEW, Berlim, Dietz Verlag, v. 23, 1984, p. 90, nota 29 (a seguir citado como K, seguido pelo número do tomo em algarismo latino e pelo da página em arábico).

[3] Idem – Theorien über den Mehrwert, tomo 2, MEW, Berlim, Dietz Verlag, v. 26.b, 1983, p. 162 (a seguir citado como Th, seguido pelo número do tomo em algarismo latino e pelo da página em arábico).

[4] Adam Smith.  The Wealth of Nations, Cannan edition, Nova York, Modern Library, 1937, p. 47

[5] idem, ibidem, p.50.

[6] idem, ibidem, p.52.

[7]Os sucessores de A.. Smith, então, na medida que não lhe opõem a reação de concepções antigas e obsoletas, podem prosseguir imperturbáveis em suas considerações e investigações de detalhe, e tomam sempre A.. Smith como sua base, seja se ligando à parte esotérica de sua obra, seja à exotérica, ou ainda, como é quase sempre o caso, misturando a ambas”. Th, II, 162-163.

[8] David Ricardo.  Principles of Political Economy and Taxation, ed. Sraffa, Cambridge, Cambridge University Press, 1951, vol. I, p. 11 – grifo meu.

[9] MARX.  Zur Kritik der Politischen Ökonomie, MEW 13, Berlim, Dietz, 1961, p. 45 (a seguir, citado como ZK, seguido pelo número da página). Sobre a oscilação da teoria do valor de Smith, ele também diz: “Se A.. Smith [...] apreende corretamente de início o valor e a relação entre lucro, salário etc., como partes componentes deste valor, depois, contudo, ele prossegue de modo inverso e quer definir os preços de salário, lucro e renda da terra como pressupostos e autônomos, para compor a partir deles o preço da mercadoria”. Th, II, 100.

[10] Th, II, 100.

[11] Th, II, 162.

[12] Th, II, 163. Assim, “Ricardo, ao contrário, abstrai conscientemente da forma da concorrência, para apreender a lei enquanto tal”, in Th, II, 100.

[13]Eles [os dois primeiros capítulos dos Princípios de Ricardo – JG] contêm toda sua crítica da economia política até então [existente], a ruptura categorial com a contradição que perpassa [a obra de] A.. Smith entre a forma exotérica e a esotérica de consideração, e produz, ao mesmo tempo, por esta crítica, alguns resultados totalmente novos e surpreendentes”, in Th, II, 166. E o divisor de águas representado pela alternativa radical ricardiana fica claro a seguir: “Porque Ricardo, como aquele que consumou a economia política clássica, desenvolveu e formulou do modo mais puro a determinação do valor-de-troca pelo tempo de trabalho, foi naturalmente nele que se concentrou a polêmica surgida do lado econômico”, in ZK, 46-47.

[14] ZK, 45, grifo meu.

[15] Th, II, 100.

[16] Th, II, 161-162. Cf. também: “Em Ricardo, a unilateralidade vem dele querer em geral demonstrar que as diversas categorias ou relações econômicas não contradizem a teoria do valor, em vez de, ao contrário, desenvolvê-las junto com suas contradições aparentes a partir deste fundamento ou expor o desenvolvimento deste fundamento mesmo”, in Th, II, 146.

[17] K, I, 95, nota 32 – referindo-se a Smith e Ricardo.

[18] K, I, 95, nota 32.

[19]Uma coisa pode ser valor-de-uso sem ser valor.[...] Uma coisa pode ser útil e produto de trabalho sem ser mercadoria. Para produzir mercadoria, deve-se produzir não só valor-de-uso, mas valor-de-uso para outros, valor-de-uso social”, ao que se segue a importante nota de Engels para a 4a edição, que assim termina: “Para ser mercadoria, o produto deve ser transferido ao outro, a quem serve como valor-de-uso, através da troca.”, K, I, 55. Só é mercadoria o produto já produzido para ser trocado, não aquele consumido pelo próprio produtor nem o que eventualmente sobra deste consumo e é, só então, trocado. Pois a destinação do produto ao mercado supõe a divisão social do trabalho e a reiteração das trocas, condição para que se fixem os valores e se consolide a mercadoria como forma social.

[20] K, I, 94-95.

[21] K, I, 94, nota 31, grifo meu.

[22] Cf. K, I, 50-51, notas 3 a 7, e novamente na pg. 77, nota 23, onde diz de Bailey: “Aliás, a irritação com que a escola ricardiana o atacou, por exemplo, em sua ‘Westminster Review’, prova que, apesar de suas limitações, ele tocou em feridas da teoria ricardiana”.

[23]A oposição interna entre valor-de-uso e valor, envolvida na mercadoria, é assim exposta através de uma oposição externa, isto é, através da relação de duas mercadorias, na qual a mercadoria cujo valor deve ser expressado conta imediatamente só como valor-de-uso, enquanto a outra mercadoria, na qual o valor é expressado, conta imediatamente só como valor-de-troca. A forma-valor simples de uma mercadoria é, portanto, a forma de manifestação simples da oposição entre valor-de-uso e valor, contida nela”, K, I, 75-76.

[24] Completando o raciocínio anterior, Marx diz que o processo de troca “produz um desdobramento da mercadoria em mercadoria e dinheiro, uma oposição externa na qual ela expõe sua oposição imanente entre valor-de-uso e valor. Nesta oposição, as mercadorias se defrontam enquanto valor-de-uso ao dinheiro, enquanto valor-de-troca”, K, I, 119.

[25] Por exemplo, comparando a paixão que os conquistadores espanhóis da América tinham pelo ouro com a dos tártaros pelo gado, Smith iguala de fato ouro a gado e chega a dizer que “dos dois, a noção tártara estava, talvez, mais próxima da verdade”; SMTH, op. cit., p. 399. É interessante ver, aliás, toda a exposição e a crítica dele ao mercantilismo, no 1o capítulo do Livro IV da Riqueza das Nações. Sobre isto, diz Marx: “A inextinguível luta dos economistas modernos contra o sistema monetário mercantil vem em grande parte de que este sistema divulga com uma brutal ingenuidade o segredo da produção burguesa, o fato dela ser dominada pelo valor-de-troca. [...]Na sua crítica do sistema monetário e mercantil, a economia política falta, portanto, por combater este sistema como mera ilusão, como uma teoria simplesmente falsa, sem reconhecê-la como uma forma bárbara de seu próprio pressuposto fundamental.”; ZK, 134.

[26] Cf. “‘Produtos são sempre comprados por produtos ou por serviços; o dinheiro é só o meio pelo qual a troca é efetuada’ [citação dos Princípios de Ricardo - JG] (Ou seja, o dinheiro é simples meio de circulação, e o próprio valor-de-troca é mera forma desvanecente da troca de produtos por produtos – o que é falso.)”; Th, II, 500, grifo meu.

[27] Th, II, 501. Cf. também: “de modo conseqüente, o dinheiro é apreendido como simples intermediário da troca de produtos, não como uma forma essencial e necessária de existência da mercadoria que tem de se expor como valor-de-troca – trabalho social em geral. Na medida em que a transformação da mercadoria em mero valor-de-uso (produto) apaga a essência do valor-de-troca, pode-se, ou melhor, deve-se negar com a mesma facilidade que o dinheiro seja uma figura essencial, autonomizada da forma original da mercadoria no processo da metamorfose”, Th, II, 502.

[28] K, I, 127.

[29] Th, II, 504. E de modo ainda mais enfático: “A opinião adotada por Ricardo (de fato pertencente a [James] Mill) do tedioso Say (à qual voltaremos no comentário sobre esta pessoa lastimável), de que não é possível sobreprodução ou, pelo menos, um ‘general glut of the market’, repousa na proposição, de que produtos são trocados por produtos; ou, como disse Mill, no ‘equilíbrio metafísico de vendas e compras’, [o que], mais desenvolvido, [levaria à] demanda determinada só pela produção mesma ou ainda à identidade de demanda e oferta”, Th, II, 493.

[30] Cf. “No fundo, no raciocínio ricardiano e assemelhados certamente está não só a relação de compra e venda, como também a de demanda e oferta [...] Como diz Mill, compra é venda, assim também demanda é oferta e oferta é demanda [...] Apreendendo além disso, e mais concretamente, a relação de demanda e oferta, surge a de produção e consumo”, Th, II, 505.

[31] T, II, 510.

[32] Cf. “nos momentos em que todas as mercadorias são invendáveis [...] há de fato mais compradores do que vendedores de uma mercadoria, o dinheiro, e mais vendedores do que compradores de todo outro dinheiro, as mercadorias”, ZK, 78.

[33] Th, II, 514.

[34] Th, II, 519.

[35] Th, II, 502. Cf também: “Retorna-se não só para antes da produção capitalista, mas para antes da simples produção de mercadorias, e o fenômeno mais desenvolvido da produção capitalista – a crise do mercado mundial – é refutado, porque é refutada a primeira condição da produção capitalista, a saber, que o produto seja mercadoria, que se apresente como dinheiro e que deva completar o processo da metamorfose.”, Th, II, 501-502.

[36] T, II, 501