Apresentação

O vigésimo número de Crítica Marxista publica artigos sobre temas bem variados, mas é o texto de Louis Althusser, até aqui inédito em português, que pode provocar mais polêmica. Ensaio filosófico inacabado, escrito em sua maior parte em 1982, “Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre” permaneceu inédito durante a vida do autor. Foi publicado apenas em 1994, graças ao trabalho de recuperação e de composição de François Matheron. Desde então tem alimentado muitas polêmicas.

Althusser procura identificar na história da filosofia uma longa tradição subterrânea, que ele chama materialismo aleatório, da chuva, do encontro, do “pegar” ou “dar liga”: todas estas expressões, algumas evidentemente metafóricas, são indispensáveis para compreender  sua última obra filosófica. Retomando do materialismo antigo a tese de que todas as configurações concretas da natureza resultam do encontro fortuito dos elementos que as constituem, ele a transpõe para os processos técnicos, culturais e históricos, que consistiriam na combinação, radicalmente contingente, de componentes heteróclitos. Há combinações que “pegam”, como a do cimento, ferro, areia, cal, pedra britada etc na produção do concreto. Nada predispunha cada um destes elementos a sintetizarem-se, mas, sintetizando-se, sua junção contingente gera efeitos necessários. O aprofundamento da divisão social do trabalho, a ampliação da produção de mercadorias e a acumulação do capital-dinheiro remontam a tempos “ante-diluvianos”. Não era uma fatalidade inscrita em alguma lei do devir que esses processos se combinassem, na Inglaterra dos séculos XV-XVII, com a separação generalizada dos trabalhadores relativamente aos meios de produção e o controle da produção pelo capital. A liga pegou, conduzindo, em alguns séculos, à dominação planetária do capital financeiro.

Há quem conteste que a descoberta deste materialismo subterrâneo constitua parte integrante da obra de Althusser. Além de inacabado, argumentam, o texto foi produzido em condições psíquicas precárias e editado apenas após a morte do autor. Preferimos deixar de lado esse tipo de consideração, atendo-nos apenas aos argumentos em torno da polêmica fundamental.

Alguns comentadores consideram o texto que aqui apresentamos a nossos leitores o  ponto lógico de chegada de idéias que, de algum modo, já estariam virtualmente contidas na obra dos anos 60 – Pour Marx e Lire le Capital. Num congresso internacional sobre a obra de Althusser ocorrido em Veneza em fevereiro de 2004, houve pesquisadores, como Warren Montag, que aduziram em defesa dessa tese o fato de terem encontrado nos arquivos de Althusser uma carta da década de 1960 onde ele já utilizava a expressão “materialismo do encontro”. Outros, entretanto, argumentam, ao contrário, que o materialismo do encontro representa uma ruptura com o materialismo praticado por Althusser e seu grupo na década de 1960: não seria possível compatibilizar a versão estrutural do materialismo histórico, então produzida pelos althusserianos, com o materialismo aleatório do último Althusser. Poderíamos aduzir uma terceira consideração a esse debate: o fato daquele materialismo estrutural ter descurado o conceito de forças produtivas e o seu papel na teoria da história, não o predisporia a conceber a mudança histórica como contingência? Alguns dos participantes do Congresso de Veneza consideraram que o materialismo do encontro representa uma ruptura de Althusser com o próprio marxismo. Nesse mesmo congresso, Maria Turchetto propôs uma interpretação do texto em que  retificava o materialismo do encontro e colocava em evidência a dívida intelectual de Althusser para com o biólogo Jacques Monod – parte das intervenções do Congresso de Veneza está na página www.althusser.it

O Comitê e o Conselho Editorial de Crítica Marxista abrigam avaliações distintas da produção althusseriana dos anos 60; entre seus editores e colaboradores, há opiniões negativas a respeito do texto que ora publicamos. Prevaleceu, contudo, a idéia de que ele vale pelas perguntas sem rodeios que sacodem  as visões simplificadoras do processo histórico, por sua originalíssima contribuição crítica ao debate sobre as categorias marxistas e pelo aprofundamento filosófico da posição materialista.


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A presente tradução foi elaborada por Mônica Zoppi Fontana que  – com a colaboração de Luziano Mendez de Lima – realizou um excelente trabalho de edição crítica do texto. Apoiando-se em pesquisa própria e também no trabalho de Vittorio Morfino e Luca Pinzolo, responsáveis pela tradução italiana do texto de Althusser, Mônica Fontana colocou à disposição do leitor brasileiro um rico manancial de informações sobre o texto e sobre as obras e autores nele citados, o que valoriza ainda mais a edição brasileira de “Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre”.