10/12/2007
Jornal da Unicamp entrevista com Armando Boito Jr., autor do livro Estado, política e classes sociais

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Jornal da Unicamp, 10 de dezembro de 2007

Ensaios discutem renovação de conceitos à luz de 
novas pesquisas produzidas pelas ciências humanas

Boito visita ‘canteiro de 
obras’ do novo marxismo

MANUEL ALVES FILHO

 

O professor Armando Boito, do IFCH: “Na ciência política contemporânea predominam as teorizações de curto alcance e de abrangência limitada”  (Foto:Antônio Scarpinetti)teoria política contemporânea, mais especificamente a teoria política marxista, merece uma reflexão polêmica e aprofundada no livro Estado, política e classes sociais, recém-lançado pelo professor Armando Boito Jr., do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. A obra reúne 12 ensaios produzidos pelo autor ao longo dos anos 2000, a maioria de natureza teórica, sendo um deles inédito. Nos textos, Boito apresenta, problematiza e desenvolve conceitos relacionados ao tema central, sempre à luz das discussões historiográficas. “A ambição maior desse trabalho é contribuir, ainda que modestamente, para a renovação da teoria marxista, o que exige uma atitude desprendida frente ao legado do marxismo e frente às novas pesquisas produzidas pelas ciências humanas”, afirma. Na entrevista que segue, o intelectual detalha alguns aspectos do livro e fala dos desafios para a construção de um marxismo renovado.

Jornal da Unicamp - O senhor afirma que o seu livro trata de teoria política. Existe de fato uma teoria da política? Qual seria a sua importância?
Armando Boito Jr. - A maioria dos ensaios que publiquei nessa coletânea são trabalhos teóricos. Um texto teórico é aquele que toma a própria teoria como objeto. Uma teoria deve ser entendida como um conjunto articulado de teses e conceitos. Esse é um tema polêmico, posto que muitos cientistas sociais não crêem que seja possível distinguir um texto teórico de um texto de análise empírica. Lembram que todo texto trabalha com informações e com conceitos e, por isso, essa divisão seria formalista e simplificadora. Eles têm razão quando dizem que qualquer trabalho opera com informações empíricas e com conceitos. 

O conceito depende da informação empírica, posto que nenhum conceito cai do céu, e, de diversas maneiras, a informação empírica qualificada também depende, por sua vez, da intervenção do conceito, isto é, da teoria, que é o que incita a busca da informação e permite caracterizá-la. Porém, o que acontece é que, na pesquisa teórica, o conceito aparece como objeto do trabalho, enquanto que, na pesquisa empírica, o conceito aparece como instrumento. No meu livro trato da teoria política, mais especificamente de conceitos como poder político, Estado, crise política, mudança política, cena política, formação das classes sociais, ciclo revolucionário, cidadania e outros. Para que serve isso tudo? Serve para fazermos uma análise qualificada do político – o Estado, a cidadania etc. – e da política – as crises, a mudança etc. – nas sociedades, principalmente nas sociedades capitalistas contemporâneas, posto que é nesse nível da teoria política, isto é, no nível da teoria política das sociedades capitalistas, que o meu livro mais trabalha. 

JU – Poderia dar um exemplo de como trata esses conceitos?
Boito - Na imprensa brasileira, a noção de crise foi banalizada. Tudo é crise e é, ao mesmo tempo, crise de todo tipo: política, moral, civilizacional etc. Ora, para caracterizar uma crise política, isto é, uma conjuntura que contenha efetivamente a possibilidade de mudança política, é necessário conhecer o conceito de crise, seus requisitos. Também é necessário saber distinguir os vários tipos de crise possíveis – há crises que permitem uma mera mudança de governo, outras que permitem uma revolução. As conjunturas de crise não são tão freqüentes quanto o uso corrente do termo sugere. 

JU - O senhor diz trabalhar com a teoria política marxista. O que vem a ser essa teoria?
Boito
 - Isso também gera algumas polêmicas. Grande parte do marxismo que herdamos do século XX é muito marcada pelo economicismo. A economia aparece como a causa única e verdadeira de todos os fenômenos sociais: a política, a cultura, os comportamentos etc. Dessa perspectiva, não teria muito sentido falar de uma teoria política marxista. A política seria mera emanação da economia, não teria existência e eficácia específicas e, sendo assim, não demandaria conceitos e teses específicos para ser abordada. O meu livro trabalha noutro terreno. Parto do pressuposto de que os elementos básicos da teoria política marxista já existem. Cabe aos estudiosos do marxismo desenvolvê-los. Isso exige um rompimento com parte do marxismo que herdamos do século XX e a abertura de um novo “canteiro de obras” que seria a construção de um novo marxismo. 

Nessa perspectiva renovadora, os marxistas têm de estabelecer um diálogo crítico e criterioso com as novas descobertas e as novas teorias nascidas no campo das ciências sociais que se pratica nas universidades. Do conceito de estrutura, produzido pela corrente estruturalista francesa, a Pierre Bourdieu, com a sua sociologia da escola e das classes sociais, passando pelos teóricos institucionalistas, muitas contribuições devem ser tomadas em conta pelos marxistas. 

JU – Trata-se de uma tarefa difícil, não?
Boito
 - Esse é, evidentemente, um trabalho complexo. Não se pode transportar, arbitrariamente, um conceito produzido em uma problemática teórica para o interior de outra problemática teórica que lhe é estranha. Gaston Bachelard já nos alertou sobre os perigos que isso representaria. Mas, através de um processo de retificação conceitual, os marxistas podem sim – e devem – incorporar, de forma crítica e autocrítica, aquilo que é produzido fora do marxismo. Aliás, quando Marx e Engels lançaram as bases do que conhecemos como materialismo histórico, eles partiram do socialismo francês, da economia política inglesa e da filosofia alemã. Ambos retificaram elementos de cada uma dessas grandes áreas e os fundiram numa unidade nova. De resto, diversas tradições marxistas do século XX procuraram integrar ao marxismo, ainda que de modo crítico, muitas correntes teóricas nascidas fora dele, como a teoria das elites, o estruturalismo, a ontologia etc. Se foram ou não bem-sucedidas, e a que se deveu o sucesso ou o fracasso de cada uma delas, essa é outra questão.

JU - Como uma teoria política marxista se diferenciaria no campo atual da ciência política?
Boito 
- A resposta exigiria muitas considerações. Vou fazer apenas três comparações, contrastando a teoria política marxista com outras correntes teóricas que têm peso na conjuntura atual. Em primeiro lugar, a teoria política marxista é algo que poderíamos denominar uma teoria regional. No marxismo, a teoria política é apenas um aspecto de uma teoria mais geral, que é a teoria do materialismo histórico. O materialismo histórico são os conceitos mais gerais e abrangentes que tratam das formas de reprodução e de mudança da vida em sociedade. Isso tem várias conseqüências. 

A primeira é que a teoria política marxista está inserida numa teoria mais geral que, ao mesmo tempo, a ilumina e a compromete. Digo que a ilumina porque a teoria política marxista dispõe dos elementos básicos para compreender a economia, a sociedade e a cultura, que são dimensões da vida social que incidem sobre a política. O pesquisador da política que trabalha com o marxismo já encontra esse acúmulo teórico pronto e à sua disposição – a abrangência da teoria marxista é um dos seus trunfos. Mas digo também que a compromete porque, se a teoria econômica marxista, que também é uma teoria regional do materialismo histórico, estiver errada, a teoria política marxista também o estará, e assim por diante. 

Você se referiu ao capítulo em que discuto o papel da política na mudança histórica. Pois bem, o próprio título desse capítulo fala do “lugar da política na teoria marxista da história”. Isto é, eu me apoio em uma região do materialismo histórico, que não é a sua teoria da história, para lançar luz sobre a teoria política. A teoria da história, nos elementos básicos que foram apresentados por Marx em um texto muito conhecido, apresenta a história, isto é, a passagem de um tipo de organização da vida social para outro, como resultado do desenvolvimento das forças produtivas e da luta de classes associada a tal desenvolvimento. Eu trato, então, de verificar qual é o papel da política nessa teoria da mudança histórica. 

Ora, na ciência política contemporânea predominam as teorizações de curto alcance e de abrangência limitada. O neo-institucionalismo, que é a corrente teórica dominante, separa a análise política da análise econômica e social. Isso é impensável numa teoria política marxista. Essa teoria une economia, sociedade, política e história. Não podemos entender a política sem entender as classes sociais e não podemos entender a ação das classes sem entender a economia. Não é por acaso que o meu livro se intitula Estado, política e classes sociais.

JU – O senhor falou em três exemplos... 
Boito
 - Uma segunda diferença que separa a teoria política marxista das demais teorias políticas contemporânea é o caráter, digamos assim, realista da teoria política marxista. Autores como John Rawls e Jürgen Habermas, que estão entre os mais importantes pensadores do século XX, pensam a política de maneira normativa e, para resumirmos, pensam-na de maneira edulcorada. Acreditam que o diálogo é sempre possível e que o consenso entre os agentes políticos e sociais está ao alcance da mão. A teoria política marxista, diferentemente, pensa a política como um conflito duro de interesses, que são, em última instância, interesses de classe. Os indivíduos, como integrantes de classes sociais, não têm necessariamente consciência plena das razões e dos motivos que os levam a agir desta ou daquela maneira no processo político. Sequer quando têm consciência, dirão aquilo que sabem. A luta política impõe, principalmente para as forças conservadoras, a autocensura. Na maioria dos casos, os partidos políticos e os movimentos sociais ocultam seus verdadeiros interesses e motivações, que são interesses e motivações que remetem à condição de classe e os opõem a outros setores sociais. 

Uma terceira diferença que eu gostaria de apontar é com os seguidores de Michel Foucault. O primeiro ensaio do meu livro faz, justamente, uma crítica ao conceito de poder de Michel Foucault. Na teoria marxista, diferentemente do que ocorre com Foucault, o poder político está concentrado no Estado e a ação política, por causa disso, deve estar estrategicamente voltada para a conquista do poder de Estado. Na coletânea intitulada A microfísica do poder, Foucault pensa o poder e a política como algo social e institucionalmente difuso. O poder seria um fluxo, presente indistintamente em todas instituições, e tampouco levaria à formação de uma hierarquia ou de uma polarização social, como a formação de um setor dominante e outro dominado. Frente a esse poder fluido e volátil toda ação seria, também indistintamente, uma ação política. Ora, para Marx e para toda tradição marxista, a política tem como objetivo estratégico a conquista do poder da classe dominante institucionalmente concentrado no Estado. Quem julga poder dar as costas para o Estado coloca-se fora da luta política. 

Diversos movimentos sociais ignoram essa tese nos dias de hoje. O altermundialismo fez da dispersão estratégica das lutas, que tem como tese correlata o desprezo pela organização partidária, uma divisa do movimento. Esses movimentos falam em mudar o mundo sem tomar o poder. Há um foucaultianismo espontâneo no altermundialismo. Se continuar assim, esses movimentos jamais conseguirão algo de muito importante.

JU - O senhor associa política a classes sociais. Muitos autores consideram que as classes sociais desapareceram ou perderam importância. O que pensa dessa posição discordante?
Boito: Trato desse assunto na segunda parte do meu livro, em ensaios que pretendo demonstrar a importância da política na conversão das classes trabalhadoras em agentes políticos organizados. Aqui, novamente, destaco o papel da política, posto que a situação econômica não basta para que uma classe atue como força social. Muitos autores acreditam que o movimento operário e socialista entrou em crise apenas devido às mudanças tecnológicas, às mudanças nas formas de gestão da força de trabalho, à precarização do trabalho e a outras transformações econômicas. Esses elementos precisam ser discutidos e, quando redimensionados, devem sim ser considerados na análise. Mas é preciso sair do terreno exclusivo da economia e pensar em algo mais amplo. O que procuro mostrar nesses ensaios é que tivemos aquilo que eu denomino o longo ciclo revolucionário do século XX, proveniente dos mais diferentes tipos de contradição em escala nacional e internacional, e que esse ciclo, embora não tenha sido completamente derrotado, posto que mudou a face do capitalismo, esgotou-se.

As crises e os ciclos revolucionários propiciam a formação dos trabalhadores em classe politicamente organizada, enquanto que os períodos de estabilidade agem em sentido contrário. Os conservadores que não se animem muito. Novas contradições estão se acumulando e nós já podemos ver isso em toda América Latina. Há indícios do início de uma nova era de polarização de classes. Ela não deve repetir o modelo do século XX, mas poderá recolocar em questão o capitalismo.

SERVIÇO:
Título: Estado, política e classes sociais
Autor: Armando Boito Júnior
Editora: Unesp
Páginas: 272
Preço: R$ 55,00